Plínio Salgado
Uma
revista, dessas que exibem o nu artístico às donzelas casadouras e às meninas
da Primeira Comunhão, publicou há dias, numa página inteira, a foto sugestiva
de uma garota carnavalesca em trajes de Eva, com uma serpente de flores
enroscada no alvo torço de Frinéia ondulante no ritmo do samba, como Afrodite a
sair da concha do Mar Egeu.
A
legenda participava aos leitores que a esplêndida ninfa - não sem os protestos
gerais dos foliões - fora expulsa do Teatro Municipal pelo fato de erigir-se,
naquele pudico e recatado ambiente de virtudes burguesas, como uma nota viva de
escândalo a ferir a sensibilidade castíssima da grã-finagem carioca.
Vendo-se
assim repelida pelas tradicionais virtudes da raça e pelos incontestáveis
sentimentos cristãos que animam os folguedos de Momo nos três dias das bacanais
e saturnais em que desafogam seu tédio as famílias, a sílfide resolveu sair,
mas sair dançando. E de tal forma se portou nos movimentos coreográficos da
retirada estratégica, desmanchando-se em reboleios de ritmos tão eloquentes,
que um trovão de aplausos saudou-a no saguão daquele templo de castidade em que
se transformara o teatro principal do Rio, à falta de um autêntico santuário de
Vesta.
Σ
A
fotografia era expressiva e convidava a meditar sobre as possíveis intenções da
heroína desnuda.
De
mim, confesso que o nudismo de tão ousada bailadeira não me pareceu imoral:
antes, pelo contrário, interpretei-o como verdadeira pregação apostólica em
prol da moralização dos nossos costumes.
Que
fez a jovem carioca, naquela noite de tão esplêndido triunfo para a sua beleza
corpórea, senão deduzir, da premissa burguesa do nosso cristianismo paganizado,
a consequência lógica diariamente encoberta nas malhas dos sofismas com que se
absolve de culpas o nosso mundo de hoje?
Muitos
modos há de apostolizar consoante a inspiração do pregador e a psicologia do
gentio cuja catequese se pretende. Uns se valem da palavra e outros dos atos e
atitudes. E tanto os sermões verbais como os que se ministram à força de
exemplificações variam na forma, estilo, timbre e mais originalidade que o
gênio cria como instrumento de persuasão.
Contra
os desmandos orgíacos de Roma, utiliza-se Catão da sua austeridade, e ainda que
autores desconfiados vislumbrem nas admoestações do censor algumas frestas a
entremostrar mal dissimulada hipocrisia, o terrível repúblico ficou a
simbolizar, quando não a sinceridade de propósitos, pelo menos um método no
aplicar corretivos.
O
risco a que se expõem esses pedagogos, demasiadamente severos e amigos da ordem
direta nas suas proposições morais, é a de serem tachados de refinados
mistificadores. E não somente na pena dos críticos antigos, mas sobretudo na
dos modernos, que jogam hoje com os dados da psicanálise para transformar em
despeito de incapazes e fracassados as advertências dos moralistas.
Para
os tais psicanalistas, se um homem aconselha a outro que não roube, é porque no
íntimo sente inveja do ladrão, que é um indivíduo capaz de praticar o delito
que o conselheiro não se sente com coragem de efetivar; se outro (ou outra,
como no "Electra" de O'Neil, que é uma das mais edificantes
bandalheiras do teatro moderno) sente repugnância pela atração incestuosa de
alguém, é porque no fundo sofre o mesmo magnetismo pela sujeira; enfim,
qualquer sujeito, que pugne pela moralidade dos costumes, vai para o catálogo
dos freudianos como tipo a disfarçar a inveja de quantos destapam as comportas
dos instintos.
Fica,
assim, destruída toda a moralidade privada ou pública e os Batistas que
pretendem corrigir as Herodíades e Salomés passam por indivíduos recalcados a
pretender que outros se recalquem. Não faltarão aos moralistas, já não dizemos
a cicuta de Sócrates, a fogueira de Savonarola, a Cruz de Cristo, mas as
críticas mordazes e os motejos ridicularizantes, em nome da ciência e do
progresso.
Σ
Ora,
assim pensando (ou não pensando coisa alguma como é mais provável em pedagogia
puramente intuitiva) a garota do Municipal teria resolvido mostrar, em todo o
esplendor da sua carne jovem, o verdadeiro motivo que reunia, naquele templo de
pudicícia carnavalesca, os pais, os rapazes e as moças de família.
Inverteu
ela, assim, os papéis. Em vez de ser apontada como hipócrita, desmascarou a
hipocrisia da sociedade católico-pagã de donzéis e donzelas das missas de
domingo e das praias pompeianas da talassoterapia e da heliopigmentação em que
se espojam Ganimedes e Safos desabafando complexos e afinando o instrumental
endocrínico nos extremos opostos dos recalques ultraistas de pasmosos
assexualismos com que o charlatanismo científico pretende contrabater o conceito
realista da filosofia verdadeiramente cristã.
Em
vez de, (caso ali comparecesse a pregar um sermão de refundir Tibérios e
Messalinas em forjas cândidas) em vez de arriscar-se a ouvir de algum folião ou
foliona o epíteto de hipócrita, foi ela, a náiade pagã, quem atirou à face da
plutocracia e da burocracia, que comandam a saturnal dos nossos dias, o mais
veemente dos discursos que jamais boca de frade ousou jorrar de púlpitos ainda
os mais atrevidos no escalpelar ulcerações ou esvurmá-las a ferro em brasa.
Σ
Nua,
inteiramente nua, como Frinéia diante dos juízes de Atenas, a nossa patrícia
dançando o samba e rebolando as curvas afrodisíacas, exclamava em linguagem
coreográfica:
-
Acaso é a castidade que vos reúne aqui? Porventura estas músicas lascivas vos
sugerem, ó velhos de Babilônia, ideias e pensamentos arcangélicos e visões
puríssimas do Empíreo? E vós, Adônis e Narcisos, travestidos de roupas
femininas, alimentais fantasias menos lúbricas do que as de Heliogabalo ou de
Calígula quando cingiam roupagens de Vênus ou de ninfas, de tal maneira
alucinados pelo fascínio das formas opostas ao seu sexo, que procuravam
identificar-se cerebralmente com elas? E vós, Faunos e Sátiros espiritualmente
caprípedes, farejando os perfumes mesclados ao odor dos suores femíneos,
pretendeis renovar a façanha de Santo Antão no deserto, a resistir varonilmente
às tentações envolventes? E vós, Virgens que ledes os romances analistas e as
poesias eróticas da nossa época, e assistis aos filmes de longos beijos que
galvanizam as plateias escuras e povoadas de tatos sutilíssimos, estais aqui
por acaso para rezar ave-marias ao ritmo das músicas bárbaras? E vós, matronas
que vos confundis com vossas netas e filhas na indumentária e nas atitudes,
comparecestes a este lugar nada litúrgico para, pelo menos, vos engolfardes no
romantismo daquelas velhas valsas que falavam em doçuras de líricos amores e
devaneios castíssimos de heroínas de novelas antigas? E ainda todos vós, que
mergulhais na onda tépida e aliciante dos pares em torvelinho sob o colorido
das serpentinas e os vapores da champanha, estais acaso insensibilizados pelo
bacilo de Hansen que vos eteriza a epiderme, ao ponto de não sentirdes o
contato morno dos pares conchegados? Este baile é então um festim de eunucos ou
algum místico entoar de matinas e laudes ao bruxuleio das lâmpadas sob vitrais
em que o crepúsculo transcendentaliza a doçura claustral?
Tudo
em vós, ou explícita ou implicitamente, são pensamentos voluptuosos, em cuja
corrente boiam as formas corpóreas esplêndidas e vivas, com maciezas ondulantes
e curvas harmoniosas de Astartéias ou masculinidades ostensivas ou equívocas de
Narcisos e Ganimedes. Ora, se esses são os pensamentos ocultos em vossas
cabeças, porque os não quereis ver objetivamente?
Ouso
dizer-vos, senhores, senhoras, rapazes e mocinhas, o que nem por sombras
podereis supor. E é o seguinte: esta nudez completa, sem disfarces, é mais
casta e mais pura do que as vossas roupas e as vossas atitudes.
A
nudez, em si mesma, não é imoral. Se o fosse, não estariam nos altares a imagem
de São Sebastião, as dos anjinhos barrocos a encimar frontarias de nichos e
relevos de colunas e de púlpitos, e a do próprio Cristo pregado na sua Cruz. A
atitude de dor do capitão romano varado pelas flechas, a de inocência dos
anjos, a de misericórdia do Redentor de braços abertos, como que animam a nudez
de uma eurritmia sagrada, de uma expressão divina.
O
Apolo do Belvedere, a Vênus de Milo, o Adão da Capela Sistina, estão nus e há
neles a castidade das expressões naturais.
O
que torna imoral o nu são as intenções que nele se refletem, os pensamentos
secretos que o animam. No meu caso (diz a dançarina expulsa pela assembleia do
Municipal) o que vos escandaliza não é o nu do meu corpo, mas sim a lascívia
que ponho nos ritmos com que interpreto tudo quanto se passa nas vossas almas.
Sois como os velhos de Babilônia, que denunciaram Suzana porque a viram nua no
tanque, por entre as frestas das árvores. Não era contra a nudez da formosa
israelita que eles se revoltavam, mas contra a lascívia que requeimava o sangue
decrépito e que dava intelectualmente ao corpo da banhista a própria expressão
subjetiva de suas imaginações doentias.
Notai
que Suzana banhava-se às ocultas, recatadamente. E vós? Não ides à praia
publicamente? O simples fato de vos exibirdes não transfigura o vosso nudismo
em ostentação das vossas formas, e se nessa ostentação sentis algum prazer, que
nome dareis a esse prazer? Eu o chamarei a delícia de mostrar-se e a essa
delícia chamarei deleite luxurioso. Etimologicamente, luxúria quer dizer
exuberância, ostentação, transbordamento, expansão. Ora, quem se mostra,
exubera, ostenta, transborda, expande-se e nisso há secreto gozo.
Além
do mais não há apenas o deleite subjetivo de quem exibe e o faz com artes de
provocar; há o gosto dos que veem e sobre as fantasias objetivas engendram
outras tantas pelo poder da imaginação.
Olhar
é uma forma de apoderar-se. Tanto assim é que se pagam entradas nos cinemas,
onde as fitas são alugadas aos olhos; e, em certas galerias de arte, onde os
quadros e as estatuetas são alugadas à vista.
Olhos
nada levam, dizem os espíritos superficiais. Eu vos asseguro que os olhos levam
muito. Levam a imagem estampada no cérebro e se isso não for uma forma de
posse, não sei o que seja possuir.
Mas
o nu não está somente no alienar a roupa. Uma pessoa pode estar vestida e estar
moralmente nua, do mesmo modo que uma pessoa pode estar nua, como as Virgens
cristãs levadas ao suplício, e estarem moralmente vestidas.
Tenho
a coragem de vos dizer, a todos que vos fantasiais de colombinas, arlequins,
ciganas, baianas, havaianas, que estais tão nuas como a minha nudez, isto é,
como a lascívia que a minha nudez põe na cadência de minha dança.
Nem
mesmo a vossa dança é diferente da minha. Também, como eu, não tolerais hoje a
delicadeza das valsas e das mazurcas. Os vossos médicos dirão que aquelas
danças não passavam de sublimação do instinto sexual e em nosso tempo já possuis
as válvulas de extravasamento daquilo que nossos avós chamavam sem-vergonhice e
os esculápios denominam complexos: são as danças da regressão atávica, operando
no campo da medicina moderna o mesmo que os juristas praticam refundindo as
normas do direito internacional e revogando princípios jurídicos e éticos, para
retrogradar a humanidade até à pedra lascada. Essas danças nada têm de comum
com os ritmos harmoniosos da Grécia Antiga, nem com o ritmo coreográfico e
quase litúrgico do velho Oriente; nem se parecem com os inocentes folguedos
populares dos países cristãos; nem se aproximam da poesia e da graça do
Romantismo que iluminou de sonhos e de suaves emoções o século XIX. Não: são
danças inspiradas nos selvagens da África e oriundas do cruzamento psicológico
de brancos e pretos da América do Norte. Essas danças não procuram o sentido da
harmonia e da musicalidade delicada e espiritual; elas são diretamente sexuais
e desbragadamente lascivas.
Qual
a diferença entre as vossas havaianas de umbigo de fora e as vossas baianas
mirandescas e esta nudez luxuriante com que me apresento? Qual a diferença
entre o ritmo das vossas músicas e o ritmo do meu corpo nu? Qual a diferença
entre os pensamentos dos vossos cérebros excitados pela champanha, pelo éter, pelo
odor de mulheres e homens, e a realidade que exponho aos vossos olhos?
Σ
E
a dançarina desnuda, no ritmo da dança parece concluir:
-
Puritanos! Fariseus! Ide, primeiro, compor vossas almas e depois julgai-me
Porque
não será expulsando-me que modificareis um milímetro o vosso degradante mundo,
os vossos costumes hipócritas, elevando, como seria de desejar-se numa
sociedade cristã, a moralidade do povo brasileiro!
---------------------------------------
SALGADO, Plínio. O Espírito da Burguesia. 1ª edição. Rio
de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1951. Transcrito da página 165 até
178.
Nenhum comentário:
Postar um comentário