domingo, 5 de março de 2023

O PRESTÍGIO DE JOSÉ NO EGITO

 

O Prestígio de José no Egito

Humberto de Campos

Em encontro que tivemos na rua pouco depois de 24 de Outubro, dizia-me um revolucionário histórico, daqueles que não haviam obtido ainda nem cartório nem lugar de diretor, ou de advogado, de companhia poderosa:

- O mal que o Washington fez a este país foi maior do que vocês imaginam. E vocês, que foram derrubados com ele, devem votar-lhe maior ódio do que nós. Porque a verdade é que ele privou a nação da maior parte dos seus melhores elementos, anulando para o serviço público as figuras mais representativas da mentalidade nacional.

E como eu não compreendesse bem:

- Sim, digamos as coisas com franqueza. O que o Brasil possuía de melhor estava em grande parte com o gênero: os homens mais experientes, os espíritos mais ponderados e, sobretudo, as melhores inteligências. É verdade que o governo não os atendia e eles não exerciam sobre as coisas públicas a menor influência; mas é verdade também que, fulminando indiferentemente os adversários, a Revolução vai em breve, bracejar no mesmo caos. O Washington não utilizava os homens de talento porque não queria; e a Revolução não os utilizará porque não os tem, ou, pelo menos, porque não os possui na medida das suas necessidades.

Dias depois era esse revolucionário indicado para duas comissões rendosas. Não o vi mais, depois disso. Acredito, entretanto, que, após o aparecimento do seu nome na lista dos premiados, ele tivesse mudado de opinião, admitindo que a Revolução começava a possuir, e a utilizar, já, os homens de talento... O certo, porém, é que as suas palavras anteriores, me ficaram dançando na memória, e a promover confrontos entre as figuras e os atos dos dois regimes, dos quais tirava as conclusões mais diversas.

- O homem tem razão, - dizia eu; - a Nova República está fervilhando de boas intenções, mas faltam-lhe os homens capazes de executá-las. Ela tem as partituras e o instrumental, mas os seus maestros ainda não aprenderam a música. Daí, sair-lhes o “Tanhauser”, o “Parsifal” e o “Lohengrin” quando eles anunciam a “Tosca”, e escutarmos a marcha triunfal da “Aida” sob o título de “Sinfonia do Guarani”.

E de mim, comigo:

É a tal banda de música do Xá da Pérsia...

O aparecimento do manifesto da “Legião Revolucionária” de S. Paulo, vem, parece, agora, dar inteira razão àquele revolucionário despeitado que me falava em outubro. Peça literária de fino lavor, em que se entrelaça,, em uma trama de lã e seda, a graça e a ironia, a elegância e a força, o sorriso de Paris e a sutileza ateniense, - quis o ilustre romancista sr. Plínio Salgado, que o redigiu e assinou, deixar patente que a Revolução, rica de homes de boa vontade, não podia ser mais pobre, naquele Estado, de homens de ideias. É, pelo menos, intuitivo que, si houvesse entre os revolucionários uma pena límpida e ágil como a sua, capaz de concretizar o ideal dos que se rebelaram contra as forças políticas dominantes na terra paulista, eles não iriam procurar entre os vencidos, nas fileiras do P.R.P. derrotado, entre os jovens capitães que representavam na Câmara estadual aquela agremiação política, o intérprete público do seu pensamento, e o arauto oficial do que se convencionou chamar o novo pensamento brasileiro.

Telegramas de S. Paulo publicados na imprensa carioca têm procurado comprometer, é certo, perante os seus antigos admiradores e correligionários, o brilhante e agudíssimo romancista do “Estrangeiro”, apontando-o como desleal à causa que até há pouco defendia. Eu sou, todavia, dos que lhe interpretam diversamente a atitude. Acho, mesmo, que ele, emprestando a sua pena, o seu estilo e o seu talento criador àqueles que derrubaram o partido que o fez deputado, acaba de prestar um serviço considerável, de ordem moral, a esse partido, mostrando que os vencedores, por maior que fosse o orgulho advindo da vitória, tiveram de capitular no terreno da inteligência, apelando para o adversário da véspera no momento em que precisaram de espírito claro, brilhantes, harmonioso, para. Através dele, falar à consciência nacional.

É Emile Gebhart quem conta, si me não engana a memória, um episódio de que espanhóis tiraram, no século XVII, uma das suas canções populares. Nas lutas persistentes entre turcos e venezianos pelo domínio do Adriático, sucedeu uma galera de infiéis aprisionar outra de Veneza, metendo a ferros toda a tripulação. Os turcos vitoriosos não eram, porém, homens afeiçoados ao mar, acostumados ao trato da navegação, mas, soldados que voltavam de uma das ilhas do Arquipélago, e que se haviam desgarrado do grosso da frota no dorso traiçoeiro das ondas. Navegando sem rumo, desconhecendo a direção dos ventos e das correntes marítimas, descem eles aos porões, e trazem de lá o piloto veneziano, a quem entregam a direção da galera. E logo as velas se enfunam, a proa corta as águas marulhantes, e os bárbaros, levados pelo seu prisioneiro e palinuro, amanhecem, um dia, diante... de Veneza!

Eu não acredito que o brilhante romancista de S. Paulo pratique uma felonia política, procurando conduzir a nau dos turcos, isto é, a galera revolucionária, ao porto militar do P.R.P. Uma vitória, porém, e ela, está obtida: quando os revolucionários, donos do governo, do tesouro, de todos os bens materiais, quiseram um homem que soubesse dizer com elegância e brilho literário o que eles pensavam e sentiam, tiveram de submeter-se: fizeram como aqueles patrícios romanos do início da decadência, que tinham o pão, e o vinho, e o ouro, e os perfumes, e as mulheres, e a púrpura, e as coroas de rosas, mas, que, quando pretendiam dirigir-se pela palavra escrita aos que se achavam longe, tinham de recorrer ao estilo dos escravos ou dos libertos.

E foi assim que, dentro mesmo de Roma, Juvenal encontrou o grego vencido traçando o destino do vencedor.

Demo-nos, pois, nós, os elementos da Velha República, os mais vivos e festivos parabéns. Os filhos de Jacob, trazidos, trazidos da Mesopotâmia, são escravos do Faraó.

Mas é José, escravo, quem governa o Egito!

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CAMPOS, Humberto de. Notas de um Diarista. 2ª Série. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936; transcrito das págs. 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21.

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