sábado, 1 de julho de 2023

Palavras herméticas a iniciados (1957)

 

Palavras herméticas a iniciados (1957)

Plínio Salgado

O problema é este: descobrir o Homem no homem.

 

Quando fazemos tal descoberta no íntimo de nós mesmos, cumpre-nos dar expansão e plenitude ao Homem (com “H” maiúsculo) de sorte que este domine o homem (com “h” minúsculo).

 

O nosso pessimismo não deve ir ao ponto de não acreditarmos na existência do Homem Superior dentro de cada homem comum. O Ser Humano comporta reservas de grandeza moral, muitas vezes soterradas pelas paixões ou pelas sedimentações prolongadas dos hábitos ou dos costumes sociais ambientes.

 

As paixões, que procedem dos fundos impuros da ambição, da vaidade, da inveja, do ressentimento, da sensualidade e do ódio, são como o eruptir das lavas nas explosões geológicas: sufocam as terras férteis e tranquilas por sobre cuja crosta se petrificam.

 

E os costumes, os hábitos de uma sociedade medíocre constituem, na sua ação constante, algo como os contínuos depósitos de areia e detritos trazidos pelos ventos, formando as dunas estéreis sobre o solo fecundo.

 

E do mesmo modo com se esteriliza a terra sob a ação desses agentes internos e externos, também a personalidade humana, recobrindo-se de tudo o que é inferior, sufoca as virtudes lídimas que a vivificam e apresenta-se mesquinha e degradada.

 

Nesse caso, o homem (com “h” minúsculo) dominou o Homem (com “H” maiúsculo). O inferior subjugou o superior.

 

Para usarmos de outra imagem: do mesmo modo como a árvore sadia sucumbe enrodilhada pelo “mata-pau” parasitário (o trágico urupê de que nos fala Monteiro Lobato), também a personalidade essencial do Ser Humano definha e morre sob as garras do intruso que, sendo a princípio superficial, tornou-se o usurpador profundo das seivas generosas.

 

Então, assistimos ao drama doloroso da transmutação do Herói em vilão, do Santo em pecador vulgar e rebaixado, do Idealista em imediatista, do Magnânimo em competidor nas concorrências de baixo nível.

 

Aquela tranquila serenidade dos que de tudo abrem mão para só objetivar o Sonho Maravilhoso — alimento da alma na transitoriedade desprezível dos caminhos da vida — desaparece no íntimo do Ser, que se apresenta agora conturbado e arrítmico nas suas atitudes e no seu comportamento.

 

O domínio do Homem sobre o homem só se efetiva pela utilização das forças do Espírito. Viver pelo Espírito é viver a vida harmoniosa pela qual o Homem supera as pequenezas da terra e se integra na harmonia de Deus.

 

Essa vida espiritual não se alimenta da seiva nem da ciência, nem da arte, nem do que costumamos chamar ilustração, erudição ou cultura. Pois muitos são os cientistas, e os artistas, e os indivíduos ilustres pelo saber e que, entretanto, no meio em que vivem, não passam de atormentados e desesperados. Essa vida espiritual extrai os elementos de que necessita das misteriosas potências interiores que todo Ser Humano possui e que deve aproveitar.

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A luz do espírito não provém dos atritos violentos; não é a centelha arrancada das pedras, não é o relâmpago oriundo da explosão das nuvens carregadas de eletricidade contrária, não é o resultado do furor das forças desencadeadas do recesso das moléculas e dos átomos. A sua claridade é branda e suave como a das lâmpadas dos Tabernáculos, que se sustentam mansamente do azeite da árvore predestinada cujos ramos simbolizam a Paz.

 

O óleo da Sabedoria existe no fundo de todas as Lâmpadas Humanas; o que nos cumpre é imergir nele o pavio do nosso coração, isto é, do nosso sentimento de bondade, mantendo acesa a chama da compreensão.

 

Quem assim procedeu adquiriu a mais feliz das possibilidades humanas: a possibilidade da convivência com os seus semelhantes. E nisso está o segredo da Paz interior, que nos eleva acima das vulgaridades e nos conduz às grandes construções.

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Quando Deus quis impedir que os homens continuassem a construir a torre de Babel, que fez Ele? Dividiu os construtores em idiomas os mais diversos. De sorte que quando um pedia tijolos, o outro lhe trazia água; e se algum precisava de pedras, o outro lhe fornecia madeira; e se um dirigente necessitava de qualquer material que sabia existir do lado norte, os seus dirigidos o iam buscar do lado sul, onde nada havia.

 

A torre de Babel é um símbolo a ensinar-nos a total impossibilidade de se unirem os homens para um fim comum, se eles não se entendem.

 

Entenderem-se, depois construir; porque pode dar-se o caso de dois ou mais homens quererem a mesma coisa e brigarem convencidos de que o outro, ou os outros, desejam coisa diferente.

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Onde houver incompreensão não haverá construção. Mas, tendo-se em vista que entender línguas é mais fácil do que entender homens, verificamos quão difícil é o problema da convivência e da unidade dos pensamentos e do comportamento nas reciprocidades do trato e no esclarecimento das intenções.

 

No entanto, é preciso que haja compreensão. E o mais singular, nesse esforço a que nos devemos entregar no intuito de consolidar a harmonia entre os que, no fundo, querem a mesma coisa, encontra-se nesta grande verdade: não será pesquisando “o outro” que logramos entendê-lo, mas pesquisando as profundezas da nossa própria personalidade. Porque sendo a essência humana uma só, ainda que se apresente na diversidade dos tipos pessoais, existe em nosso mundo interior um espelho onde sempre encontramos a imagem daquele a quem desejamos compreender.

 

Se soubermos olhar para esse espelho, uma grande surpresa nos aguarda, porque na fisionomia do outro veremos a nossa. Então, sentimo-nos movidos por um sentimento de fraternidade tão grande que os nossos olhos se umedecerão e invencíveis impulsos generosos nos elevarão à plana mais alta a que pode atingir o ente humano.

 

E está neste fato uma das provas da existência de Deus. Se os homens se compreendessem por si mesmos e a compreensão resultasse em um processo objetivo de observação, de análise, de verificação, eles poderiam viver felizes sem precisar do seu Criador, que acabariam esquecendo, mas o recurso ao nosso mundo interior, o processo introspectivo da nossa análise, a procura do espelho subjetivo, representam uma busca de Deus, Senhor de todos os idiomas. Dicionário de todas as línguas e dialetos, revelador de todas as expressões do Universo material e imaterial. É em Deus que os homens se encontram.

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E quando os homens (com “h” minúsculo) se encontram uns aos outros, também encontram em si mesmos o Homem com “H” maiúsculo, isto é, o dominador de todas as mesquinhezas oriundas das fraquezas da carne.

 

Mas se os homens se encontram uns aos outros, não se iluminam com a luz do Espírito e tudo querem interpretar pelas aparências materiais das expressões recíprocas às quais emprestam arbitrariamente as intenções que o seu próprio egoísmo sugere, nesse caso os homens — mesmo se dizendo unidos por pensamento e objetivos formais — estarão desunidos, enfraquecidos, destruídos de todas as possibilidades de um êxito comum, ainda que esse êxito diga respeito aos mais nobres ideais.

 

Assim desagregados, cada qual se governará pela sua presunção e esta será a tenebrosa conselheira que deflagrará a luta entre os que, por dever decorrente de um alto fim pré-estabelecido, deveriam tudo sacrificar para manter a unidade de quantos se aliciaram e se congregaram visando um nobre objetivo.

 

Esse estado de espírito vai às últimas consequências. A presunção gera a desconfiança; a desconfiança gera as interpretações injustas; as interpretações injustas geram as ações inconsequentes; as ações inconsequentes geram, na parte adversa, atitudes de reação, quase sempre também inconsequentes; as atitudes de reação provocam novas dissensões; as dissensões degeneram em palavras levianas e insinuações malévolas; e, ao cabo de algum tempo, uma comunidade de homens que se uniram com as melhores intenções torna-se uma matilha de lobos a se entredevorarem.

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Os ideais mais puros estão sujeitos às contingências mesquinhas do homem com “h” minúsculo. Até o Evangelho — o Ideal dos Ideais, a Lei das Leis, a Salvação Definitiva — não escapou das insuficiências humanas dos seus próprios seguidores. E nem outra coisa poderemos inferir das palavras de Cristo, registradas por São Lucas (Capítulo IX, versículo 41): “Até quando estarei ainda convosco e vos sofrerei?”.

 

Aqueles homens não haviam encontrado o Homem dentro de si mesmos. E só o encontraram quando se iluminaram pela lei do amor, lei subjetiva que veio dar vida à lei objetiva dos Patriarcas e dos Profetas. Pois então conheceram a Paz — não a paz de Breno e de César, mas a Paz da consciência, que se funda na capacidade de ceder e transigir no que concerne às glórias e bens da superficialidade terrena, para não abdicar, conceder, alienar ou rejeitar a glória e os bens predestinados à essencialidade do Homem.

 

Os ideais humanos, por mais belos que sejam, nada valem, se nós os interpretamos ao clarão colorido dos nossos caprichos, das nossas animosidades, das nossas antipatias, dos nossos ressentimentos, dos nossos interesses que se dissimulam em puritanismos farisaicos; eles valem, à luz branca e pura do nosso Espírito. Pois se os objetivos materiais imediatos tudo desunem, o Espírito tudo une, tudo harmoniza, tudo coordena em ritmos perfeitos de ação e de marcha.

 

SALGADO, Plínio. Reconstrução do Homem. 4ª edição. Rio Branco (AC): Nova Offensiva, 2022; transcrito na íntegra das páginas 23 e seguintes.

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