Palavras herméticas a iniciados (1957)
Plínio Salgado
O problema é este: descobrir o Homem no homem.
Quando fazemos tal descoberta no íntimo de nós
mesmos, cumpre-nos dar expansão e plenitude ao Homem (com “H” maiúsculo) de
sorte que este domine o homem (com “h” minúsculo).
O nosso pessimismo não deve ir ao ponto de não
acreditarmos na existência do Homem Superior dentro de cada homem comum. O Ser
Humano comporta reservas de grandeza moral, muitas vezes soterradas pelas
paixões ou pelas sedimentações prolongadas dos hábitos ou dos costumes sociais
ambientes.
As paixões, que procedem dos fundos impuros da
ambição, da vaidade, da inveja, do ressentimento, da sensualidade e do ódio,
são como o eruptir das lavas nas explosões geológicas: sufocam as terras
férteis e tranquilas por sobre cuja crosta se petrificam.
E os costumes, os hábitos de uma sociedade
medíocre constituem, na sua ação constante, algo como os contínuos depósitos de
areia e detritos trazidos pelos ventos, formando as dunas estéreis sobre o solo
fecundo.
E do mesmo modo com se esteriliza a terra sob
a ação desses agentes internos e externos, também a personalidade humana,
recobrindo-se de tudo o que é inferior, sufoca as virtudes lídimas que a
vivificam e apresenta-se mesquinha e degradada.
Nesse caso, o homem (com “h” minúsculo)
dominou o Homem (com “H” maiúsculo). O inferior subjugou o superior.
Para usarmos de outra imagem: do mesmo modo
como a árvore sadia sucumbe enrodilhada pelo “mata-pau” parasitário (o trágico
urupê de que nos fala Monteiro Lobato), também a personalidade essencial do Ser
Humano definha e morre sob as garras do intruso que, sendo a princípio
superficial, tornou-se o usurpador profundo das seivas generosas.
Então, assistimos ao drama doloroso da
transmutação do Herói em vilão, do Santo em pecador vulgar e rebaixado, do
Idealista em imediatista, do Magnânimo em competidor nas concorrências de baixo
nível.
Aquela tranquila serenidade dos que de tudo
abrem mão para só objetivar o Sonho Maravilhoso — alimento da alma na
transitoriedade desprezível dos caminhos da vida — desaparece no íntimo do Ser,
que se apresenta agora conturbado e arrítmico nas suas atitudes e no seu
comportamento.
O domínio do Homem sobre o homem só se efetiva
pela utilização das forças do Espírito. Viver pelo Espírito é viver a vida
harmoniosa pela qual o Homem supera as pequenezas da terra e se integra na
harmonia de Deus.
Essa vida espiritual não se alimenta da seiva
nem da ciência, nem da arte, nem do que costumamos chamar ilustração, erudição
ou cultura. Pois muitos são os cientistas, e os artistas, e os indivíduos
ilustres pelo saber e que, entretanto, no meio em que vivem, não passam de
atormentados e desesperados. Essa vida espiritual extrai os elementos de que
necessita das misteriosas potências interiores que todo Ser Humano possui e que
deve aproveitar.
***
A luz do espírito não provém dos atritos
violentos; não é a centelha arrancada das pedras, não é o relâmpago oriundo da
explosão das nuvens carregadas de eletricidade contrária, não é o resultado do
furor das forças desencadeadas do recesso das moléculas e dos átomos. A sua
claridade é branda e suave como a das lâmpadas dos Tabernáculos, que se sustentam
mansamente do azeite da árvore predestinada cujos ramos simbolizam a Paz.
O óleo da Sabedoria existe no fundo de todas
as Lâmpadas Humanas; o que nos cumpre é imergir nele o pavio do nosso coração,
isto é, do nosso sentimento de bondade, mantendo acesa a chama da compreensão.
Quem assim procedeu adquiriu a mais feliz das
possibilidades humanas: a possibilidade da convivência com os seus semelhantes.
E nisso está o segredo da Paz interior, que nos eleva acima das vulgaridades e
nos conduz às grandes construções.
***
Quando Deus quis impedir que os homens
continuassem a construir a torre de Babel, que fez Ele? Dividiu os construtores
em idiomas os mais diversos. De sorte que quando um pedia tijolos, o outro lhe
trazia água; e se algum precisava de pedras, o outro lhe fornecia madeira; e se
um dirigente necessitava de qualquer material que sabia existir do lado norte,
os seus dirigidos o iam buscar do lado sul, onde nada havia.
A torre de Babel é um símbolo a ensinar-nos a
total impossibilidade de se unirem os homens para um fim comum, se eles não se
entendem.
Entenderem-se, depois construir; porque pode
dar-se o caso de dois ou mais homens quererem a mesma coisa e brigarem
convencidos de que o outro, ou os outros, desejam coisa diferente.
***
Onde houver incompreensão não haverá
construção. Mas, tendo-se em vista que entender línguas é mais fácil do que
entender homens, verificamos quão difícil é o problema da convivência e da
unidade dos pensamentos e do comportamento nas reciprocidades do trato e no esclarecimento
das intenções.
No entanto, é preciso que haja compreensão. E
o mais singular, nesse esforço a que nos devemos entregar no intuito de
consolidar a harmonia entre os que, no fundo, querem a mesma coisa, encontra-se
nesta grande verdade: não será pesquisando “o outro” que logramos entendê-lo,
mas pesquisando as profundezas da nossa própria personalidade. Porque sendo a
essência humana uma só, ainda que se apresente na diversidade dos tipos
pessoais, existe em nosso mundo interior um espelho onde sempre encontramos a
imagem daquele a quem desejamos compreender.
Se soubermos olhar para esse espelho, uma
grande surpresa nos aguarda, porque na fisionomia do outro veremos a nossa.
Então, sentimo-nos movidos por um sentimento de fraternidade tão grande que os
nossos olhos se umedecerão e invencíveis impulsos generosos nos elevarão à plana
mais alta a que pode atingir o ente humano.
E está neste fato uma das provas da existência
de Deus. Se os homens se compreendessem por si mesmos e a compreensão
resultasse em um processo objetivo de observação, de análise, de verificação,
eles poderiam viver felizes sem precisar do seu Criador, que acabariam
esquecendo, mas o recurso ao nosso mundo interior, o processo introspectivo da
nossa análise, a procura do espelho subjetivo, representam uma busca de Deus,
Senhor de todos os idiomas. Dicionário de todas as línguas e dialetos,
revelador de todas as expressões do Universo material e imaterial. É em Deus
que os homens se encontram.
***
E quando os homens (com “h” minúsculo) se
encontram uns aos outros, também encontram em si mesmos o Homem com “H”
maiúsculo, isto é, o dominador de todas as mesquinhezas oriundas das fraquezas
da carne.
Mas se os homens se encontram uns aos outros,
não se iluminam com a luz do Espírito e tudo querem interpretar pelas
aparências materiais das expressões recíprocas às quais emprestam
arbitrariamente as intenções que o seu próprio egoísmo sugere, nesse caso os
homens — mesmo se dizendo unidos por pensamento e objetivos formais — estarão
desunidos, enfraquecidos, destruídos de todas as possibilidades de um êxito
comum, ainda que esse êxito diga respeito aos mais nobres ideais.
Assim desagregados, cada qual se governará
pela sua presunção e esta será a tenebrosa conselheira que deflagrará a luta
entre os que, por dever decorrente de um alto fim pré-estabelecido, deveriam
tudo sacrificar para manter a unidade de quantos se aliciaram e se congregaram
visando um nobre objetivo.
Esse estado de espírito vai às últimas
consequências. A presunção gera a desconfiança; a desconfiança gera as
interpretações injustas; as interpretações injustas geram as ações
inconsequentes; as ações inconsequentes geram, na parte adversa, atitudes de
reação, quase sempre também inconsequentes; as atitudes de reação provocam
novas dissensões; as dissensões degeneram em palavras levianas e insinuações
malévolas; e, ao cabo de algum tempo, uma comunidade de homens que se uniram
com as melhores intenções torna-se uma matilha de lobos a se entredevorarem.
***
Os ideais mais puros estão sujeitos às
contingências mesquinhas do homem com “h” minúsculo. Até o Evangelho — o Ideal
dos Ideais, a Lei das Leis, a Salvação Definitiva — não escapou das
insuficiências humanas dos seus próprios seguidores. E nem outra coisa
poderemos inferir das palavras de Cristo, registradas por São Lucas (Capítulo
IX, versículo 41): “Até quando estarei ainda convosco e vos sofrerei?”.
Aqueles homens não haviam encontrado o Homem
dentro de si mesmos. E só o encontraram quando se iluminaram pela lei do amor,
lei subjetiva que veio dar vida à lei objetiva dos Patriarcas e dos Profetas.
Pois então conheceram a Paz — não a paz de Breno e de César, mas a Paz da
consciência, que se funda na capacidade de ceder e transigir no que concerne às
glórias e bens da superficialidade terrena, para não abdicar, conceder, alienar
ou rejeitar a glória e os bens predestinados à essencialidade do Homem.
Os ideais humanos, por mais belos que sejam,
nada valem, se nós os interpretamos ao clarão colorido dos nossos caprichos,
das nossas animosidades, das nossas antipatias, dos nossos ressentimentos, dos
nossos interesses que se dissimulam em puritanismos farisaicos; eles valem, à
luz branca e pura do nosso Espírito. Pois se os objetivos materiais imediatos
tudo desunem, o Espírito tudo une, tudo harmoniza, tudo coordena em ritmos
perfeitos de ação e de marcha.
SALGADO,
Plínio. Reconstrução do Homem. 4ª edição. Rio Branco (AC): Nova
Offensiva, 2022; transcrito na íntegra das páginas 23 e seguintes.
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