Esclarecimento: A publicação do Artigo abaixo só foi possível graças a generosa colaboração do Prof. Paulo Fernando, conhecido Líder Pró-Vida, profundo pesquisador da História do Brasil, possuidor da maior Pliniana existente, que nos permitiu o acesso a sua Hemeroteca; e, atualmente, é Deputado Federal pelo Distrito Federal. Aos que desejarem conhecer mais o trabalho do Prof. Paulo Fernando indicamos: https://www.instagram.com/paulofernandodf/
PRECISA-SE DE UM CÍCERO! (08/03/1936)
Plínio Salgado
Cerro os olhos e evoco o Senado
Romano. Em círculo, por sobre as balaustradas das tribunas, e por entre os
perfis, imperiais dos fustes dóricos, debruçam-se os velhos patrícios, nobre
aristocracia latina, a que a alvura das togas empresta uma imponente majestade.
Há no ambiente o peso das horas apreensivas. Corre, de ponta a ponta, desde o lugar
onde os escribas de pernas cruzadas enchem as laudas dos papiros, até ao alto
estrado dos cônsules, um vago estremecimento.
No meio de seus pares, o traidor da
República, tão hábil no dissimular como nas tramas noturnas em que urde as
conjuras contra a ordem pública e as tradições de Roma Capitolina, esboça um
vago sorriso indefinido.
Sua fisionomia não tem nada de trágico.
Falta-lhe o sentimento profundo da fatalidade, o drama das sinceridades
perfeitas e as inquietações torturantes de Brutus. Nem a alma de Cassio, republico
macerado no puritanismo fanático, nem a de Cezar, no direito de ambição dos gênios,
nem a de Sylla ou Mario, atormentados de ódios recíprocos: nenhuma dessas
expressões aflora na placidez torva do semblante.
Catilina é um conspirador vulgar.
Seus companheiros, tão dissimulados também que nem se lhes percebem os mais
leves sinais de solidariedade entre si, espelham, nos rostos amarelados de vigílias,
a morna morbidez das aguas paradas dos lagos pútridos.
Vendo-os, quem poderá dizer que esses
homens, nas caladas da noite, quando as sentinelas bocejam apoiadas às lanças
rentes aos velhos muros, e todo o rumor cessou, e, apenas, nos prostíbulos,
cresce o vago vozear de legionários, - caminham embuçados nas capas e nas
trevas, para a volúpia das tramas conspiratórias?
A hipocrisia é o método dos inconfidentes
desse jaez. Em circunstância alguma, eles se trairão. Suas palavras nem se
alteiam demasiadamente no zelo pela República, afim de que a excessivo culto
não se interprete como resguardo a possíveis Investidas de justas acusações.
Nem baixam os de Catilina a cabeça
quando o olhar de um cônsul, penetrante lhes fere as pupilas, onde a emoção não
brilha; tudo neles é a displicência atrás da qual escondem as finas sagacidades
e o ânimo destruidor.
E a República está em perigo. Sabem-no
todos. As ameaças andam no ar. Já os amigos se entreolham a medo. Nos átrios
das velhas famílias patrícias há guardas rondando à noite, até ao romper da
aurora. Nenhum homem de alta condição se arrisca a sair, mesmo entre escravos
robustos e à luz dos archotes, desde a hora oitava. Tudo se circunscreve às
palestras à meia voz na meia sombra dos triclinios; e quando os galos cantam anunciando
o dia, há um suspiro de alívio como si todos exclamassem: esta noite
escapámos...
Que pretendem, afinal, os conjurados?
De muitos se diz que respeitam as propriedades e as tradições, que se rebelam
apenas contra as leis sociais vigentes; de outros, ao contrário, se afirma que
pretendem confisco geral, a posse das mulheres e o sacrifício total dos adversários.
É voz geral que esses homens estão
endividados, que dissiparam suas fortunas em excessos orgíacos, e arcam sob o
peso de responsabilidades graves. Rebelados contra os probos e os parcimoniosos,
contra os prudentes e os sábios, contra os sóbrios e quantos se afirmem nas atitudes
viris, não os move, de nenhum modo, o intuito de Justiça ou qualquer interesse
pelas reclamações da plebe, conquanto se saiba que alardeiam falsas doutrinas
de benefícios públicos.
No Senado Romano, à última luz do
dia, um homem se levanta e se põe a falar. A República encarna-se em Cícero.
Esse homem parece um augure. Tem qualquer coisa de penetrante no olhar. Sabe de
tudo. Não há passo na sombra que lhe não repercute aos ouvidos, nem gestos na
treva de que ele não tenha conhecimento.
A princípio, o Senado não acredita. E
tão monstruoso o que Cícero revela, que o velho bom senso latino repele,
taxando de pueril. A voz de Cícero reboa sozinha. E Roma fala na sua voz. Todo
um estado de espírito vago, de terrores indefinidos e presságios cruéis,
concretiza-se no libelo tremendo, nas apostrofes de fogo e de sagrada eloquência.
Os verdadeiros conspiradores estão no
Senado Romano. É Cícero quem o afirma. Sentam-se ao lado dos sustentadores da
ordem. Respiram o mesmo ar. Debaixo das capas, trazem os punhais assassinos.
Quando os questores procuram na
plebe, ou fora dos círculos de homens ilustres os que tramam contra a religião,
contra a propriedade, contra as famílias patrícias, vêm Cícero e demonstra que
os inimigos da República têm assento nas cátedras deliberativas e vestem a toga
dos direitos políticos, e usufruem das considerações e respeito devido aos
esteios da Ordem.
Onde estiveste esta última noite.
Catilina, quando saíste embuçado, colando-te aos muros? Acaso Julgas que ignoro
teus passos?
E Cícero desperta Roma, invoca as
suas tradições e aponta seus inimigos. Não lhes dá quartel. A conspiração de
Catilina envolve homens eminentes, que ocupam cargos na República e recebem as
deferências dos varões dignos.
Há postos de confiança ocupados por
conspiradores. Sinecuras rendosas no uso-fruto de inimigos da Pátria. Esses
mesmos aquinhoados com as rendas inerentes a seus altos postos, aliam-se aos
inimigos da mesma ordem social de que derivam seus vencimentos.
A mão que se estende, de dia, ao Erário,
recolhendo as moedas, é a mesma mão que se estende à noite, por debaixo das
capas, fazendo o punhal brilhar à luz discreta das estrelas. Contra esses, nada
se faz. Tudo se tolera por se tratar de pessoas ilustres. No entanto, eles preparam
a ruína, o saque, a desonra, a vergonha.
Nunca, é de notar, Catilina e seus
asseclas chegaram ao extremo cinismo de defender, no Senado, os inimigos
declarados, os inimigos abertos da Pátria. Si tal fizessem, seria o suficiente
para que os romanos punissem tamanha infâmia, sem mais delongas. Nunca os apaniguados
de Catilina compareceram aos pretórios para assumir defesa de criminosos
confessos contra Roma. Bastaria essa atitude para os comprometer
irremediavelmente. Jamais os conjurados que tinham assento nas curuis dos
senadores ou dos cônsules ou no escabelo dos questores, ou nos altos cargos públicos,
tinham levado sua temeridade ao ponto de, por exemplo, fazerem-se gratuitos
acusadores de elementos notoriamente conhecidos como sustentáculos da segurança
e das tradições romanas. Por isso seria o bastante para que se condenassem
independente de libelos e objurgatórias.
Bastaram, porém, apenas, indícios. A
palavra de Cícero, que hoje lemos maravilhados em páginas imortais, não trouxe
prova, corpo-de-delito, testemunhos completos, elementos positivos de convicção.
Os indícios, porém, eram muito fortes. Mais forte ainda era o instinto de
defesa da República. Catilina desorientou-se com a simples acusação. Sua fuga
foi uma confissão. Foi também, não há negar, um ato digno. Sua morte redime,
até certo ponto, seu crime contra Roma.
Sua morte? Terá na verdade morrido
Catilina? Ou terá atravessado os séculos, aparecendo em todas as Nações, nas
horas graves? Quem nos dirá que ele se embuça hoje, por detrás de um artigo de
imprensa, um requerimento de “habeas- corpus”, um discurso nos parlamentos, uma
acusação às autoridades, um gesto de ódio contra os homens que se fizeram espontâneos
sustentáculos das tradições da Pátria?
Se assim for, agora, mais do que
nunca, precisa-se de um Cicero...
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