sexta-feira, 21 de abril de 2023

PRECISA-SE DE UM CÍCERO

Esclarecimento: A publicação do Artigo abaixo só foi possível graças a generosa colaboração do Prof. Paulo Fernando, conhecido Líder Pró-Vida, profundo pesquisador da História do Brasil, possuidor da maior Pliniana existente, que nos permitiu o acesso a sua Hemeroteca; e, atualmente, é Deputado Federal pelo Distrito Federal.  Aos que desejarem conhecer mais o trabalho do Prof. Paulo Fernando indicamos: https://www.instagram.com/paulofernandodf/

PRECISA-SE DE UM CÍCERO! (08/03/1936)

Plínio Salgado

Cerro os olhos e evoco o Senado Romano. Em círculo, por sobre as balaustradas das tribunas, e por entre os perfis, imperiais dos fustes dóricos, debruçam-se os velhos patrícios, nobre aristocracia latina, a que a alvura das togas empresta uma imponente majestade. Há no ambiente o peso das horas apreensivas. Corre, de ponta a ponta, desde o lugar onde os escribas de pernas cruzadas enchem as laudas dos papiros, até ao alto estrado dos cônsules, um vago estremecimento.

No meio de seus pares, o traidor da República, tão hábil no dissimular como nas tramas noturnas em que urde as conjuras contra a ordem pública e as tradições de Roma Capitolina, esboça um vago sorriso indefinido.

Sua fisionomia não tem nada de trágico. Falta-lhe o sentimento profundo da fatalidade, o drama das sinceridades perfeitas e as inquietações torturantes de Brutus. Nem a alma de Cassio, republico macerado no puritanismo fanático, nem a de Cezar, no direito de ambição dos gênios, nem a de Sylla ou Mario, atormentados de ódios recíprocos: nenhuma dessas expressões aflora na placidez torva do semblante.

Catilina é um conspirador vulgar. Seus companheiros, tão dissimulados também que nem se lhes percebem os mais leves sinais de solidariedade entre si, espelham, nos rostos amarelados de vigílias, a morna morbidez das aguas paradas dos lagos pútridos.

Vendo-os, quem poderá dizer que esses homens, nas caladas da noite, quando as sentinelas bocejam apoiadas às lanças rentes aos velhos muros, e todo o rumor cessou, e, apenas, nos prostíbulos, cresce o vago vozear de legionários, - caminham embuçados nas capas e nas trevas, para a volúpia das tramas conspiratórias?

A hipocrisia é o método dos inconfidentes desse jaez. Em circunstância alguma, eles se trairão. Suas palavras nem se alteiam demasiadamente no zelo pela República, afim de que a excessivo culto não se interprete como resguardo a possíveis Investidas de justas acusações.

Nem baixam os de Catilina a cabeça quando o olhar de um cônsul, penetrante lhes fere as pupilas, onde a emoção não brilha; tudo neles é a displicência atrás da qual escondem as finas sagacidades e o ânimo destruidor.

E a República está em perigo. Sabem-no todos. As ameaças andam no ar. Já os amigos se entreolham a medo. Nos átrios das velhas famílias patrícias há guardas rondando à noite, até ao romper da aurora. Nenhum homem de alta condição se arrisca a sair, mesmo entre escravos robustos e à luz dos archotes, desde a hora oitava. Tudo se circunscreve às palestras à meia voz na meia sombra dos triclinios; e quando os galos cantam anunciando o dia, há um suspiro de alívio como si todos exclamassem: esta noite escapámos...

Que pretendem, afinal, os conjurados? De muitos se diz que respeitam as propriedades e as tradições, que se rebelam apenas contra as leis sociais vigentes; de outros, ao contrário, se afirma que pretendem confisco geral, a posse das mulheres e o sacrifício total dos adversários.

É voz geral que esses homens estão endividados, que dissiparam suas fortunas em excessos orgíacos, e arcam sob o peso de responsabilidades graves. Rebelados contra os probos e os parcimoniosos, contra os prudentes e os sábios, contra os sóbrios e quantos se afirmem nas atitudes viris, não os move, de nenhum modo, o intuito de Justiça ou qualquer interesse pelas reclamações da plebe, conquanto se saiba que alardeiam falsas doutrinas de benefícios públicos.

No Senado Romano, à última luz do dia, um homem se levanta e se põe a falar. A República encarna-se em Cícero. Esse homem parece um augure. Tem qualquer coisa de penetrante no olhar. Sabe de tudo. Não há passo na sombra que lhe não repercute aos ouvidos, nem gestos na treva de que ele não tenha conhecimento.

A princípio, o Senado não acredita. E tão monstruoso o que Cícero revela, que o velho bom senso latino repele, taxando de pueril. A voz de Cícero reboa sozinha. E Roma fala na sua voz. Todo um estado de espírito vago, de terrores indefinidos e presságios cruéis, concretiza-se no libelo tremendo, nas apostrofes de fogo e de sagrada eloquência.

Os verdadeiros conspiradores estão no Senado Romano. É Cícero quem o afirma. Sentam-se ao lado dos sustentadores da ordem. Respiram o mesmo ar. Debaixo das capas, trazem os punhais assassinos.

Quando os questores procuram na plebe, ou fora dos círculos de homens ilustres os que tramam contra a religião, contra a propriedade, contra as famílias patrícias, vêm Cícero e demonstra que os inimigos da República têm assento nas cátedras deliberativas e vestem a toga dos direitos políticos, e usufruem das considerações e respeito devido aos esteios da Ordem.

Onde estiveste esta última noite. Catilina, quando saíste embuçado, colando-te aos muros? Acaso Julgas que ignoro teus passos?

E Cícero desperta Roma, invoca as suas tradições e aponta seus inimigos. Não lhes dá quartel. A conspiração de Catilina envolve homens eminentes, que ocupam cargos na República e recebem as deferências dos varões dignos.

Há postos de confiança ocupados por conspiradores. Sinecuras rendosas no uso-fruto de inimigos da Pátria. Esses mesmos aquinhoados com as rendas inerentes a seus altos postos, aliam-se aos inimigos da mesma ordem social de que derivam seus vencimentos.

A mão que se estende, de dia, ao Erário, recolhendo as moedas, é a mesma mão que se estende à noite, por debaixo das capas, fazendo o punhal brilhar à luz discreta das estrelas. Contra esses, nada se faz. Tudo se tolera por se tratar de pessoas ilustres. No entanto, eles preparam a ruína, o saque, a desonra, a vergonha.

Nunca, é de notar, Catilina e seus asseclas chegaram ao extremo cinismo de defender, no Senado, os inimigos declarados, os inimigos abertos da Pátria. Si tal fizessem, seria o suficiente para que os romanos punissem tamanha infâmia, sem mais delongas. Nunca os apaniguados de Catilina compareceram aos pretórios para assumir defesa de criminosos confessos contra Roma. Bastaria essa atitude para os comprometer irremediavelmente. Jamais os conjurados que tinham assento nas curuis dos senadores ou dos cônsules ou no escabelo dos questores, ou nos altos cargos públicos, tinham levado sua temeridade ao ponto de, por exemplo, fazerem-se gratuitos acusadores de elementos notoriamente conhecidos como sustentáculos da segurança e das tradições romanas. Por isso seria o bastante para que se condenassem independente de libelos e objurgatórias.

Bastaram, porém, apenas, indícios. A palavra de Cícero, que hoje lemos maravilhados em páginas imortais, não trouxe prova, corpo-de-delito, testemunhos completos, elementos positivos de convicção. Os indícios, porém, eram muito fortes. Mais forte ainda era o instinto de defesa da República. Catilina desorientou-se com a simples acusação. Sua fuga foi uma confissão. Foi também, não há negar, um ato digno. Sua morte redime, até certo ponto, seu crime contra Roma.

Sua morte? Terá na verdade morrido Catilina? Ou terá atravessado os séculos, aparecendo em todas as Nações, nas horas graves? Quem nos dirá que ele se embuça hoje, por detrás de um artigo de imprensa, um requerimento de “habeas- corpus”, um discurso nos parlamentos, uma acusação às autoridades, um gesto de ódio contra os homens que se fizeram espontâneos sustentáculos das tradições da Pátria?

Se assim for, agora, mais do que nunca, precisa-se de um Cicero...

Publicado na A OFFENSIVA em 08 de Março de 1936.

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