Esclarecimento: A publicação do Artigo abaixo só foi possível graças a generosa colaboração do Prof. Paulo Fernando, conhecido Líder Pró-Vida, profundo pesquisador da História do Brasil, possuidor da maior Pliniana existente, que nos permitiu o acesso a sua Hemeroteca; e, atualmente, é Deputado Federal pelo Distrito Federal. Aos que desejarem conhecer mais o trabalho do Prof. Paulo Fernando indicamos: https://www.instagram.com/paulofernandodf/
A Angústia de Pilatos (31/01/1937)
Plínio Salgado
Um rumor de passos e de vozes cresce
na escadaria do palácio de Annaz, o Pontífice. Punhos fortes batem-lhe à porta.
O velho sacerdote entreabre o velário e os archotes da turba iluminam-lhe as
longas barbas brancas. A esse clarão, também Annaz divisa, entre populares
exaltados, a silhueta de Jesus. Um arrepio corre pela sua espinha. O Sumo
Sacerdote estremece.
-Que quereis?
- Este homem deve ser julgado.
Annaz sabe, no íntimo d'alma, as
razões políticas da exaltação feroz daqueles punhos que se erguem ameaçadores.
Essa prisão fora concertada nos conciliábulos secretos, em que ele próprio também
tomara parte. Mas Annaz estremece. Qualquer coisa lhe agita o espírito. Um
terror vago lhe assalta o coração. Suas pernas tremem. Parecia-lhe tão fácil
julgar um inocente. E, entretanto, o Pontífice empalidece.
Empalidece porque sabe que é preciso
condenar. Assim o determinam as razões de Estado. É necessário ouvir as respostas
do Justo ao interrogatório. É preciso interpretar a Lei de conformidade com os
interesses do momento. E ele treme.
Os acusadores se agitam. Sobe um
clamor. Urge dizer alguma coisa.
Então, Annaz, Sumo Pontífice, apela
para uma preliminar. Não pode tomar conhecimento do caso, porque não lhe toca
esse ano o exercício do pontificado. Quem está funcionando é Caiphás, seu genro.
E Jesus é levado a Caiphas.
II
Caiphas, rodeado dos juízes,
interroga o acusado.
Os que o prenderam exigem a pena de
morte. O Sumo Pontífice, porém, não tem poderes para decretar a pena de morte.
Isso compete às autoridades romanas.
Jesus é interrogado. Longamente.
Torturantemente. Mas tudo o que ele responde, se crime constitui em face da Lei,
é crime de caráter religioso. Derrubam-se os livros. As frontes se curvam sobre
os textos. Os hermeneutas discutem. E, assim, atravessam a madrugada.
No íntimo dos doutores há um esquisito
terror. O terror em face da Verdade,
Pela manhã, depois de longos estudos,
sentam-se em suas cadeiras, para se pronunciarem em definitivo.
Socorrem-se do mesmo expediente de
Annaz. Em acordão unânime, decidem que não cabe a Caiphás o julgamento, pois,
declarando-se Jesus rei dos Judeus, pratica um ato de rebelião contra Cézar.
Ora, uma atitude de rebeldia contra o Império Romano é crime que só as leis de
segurança do Império podem punir, através de autoridade do Império.
Não se trata de um crime comum, mas
de um crime político. O tribunal, intérprete e aplicador da Lei de Moysés, não
tem poderes para se imiscuir em assumpto cuja consideração apenas a Cézar e
seus delegados compete.
Isto posto, enviam Jesus a Pontius
Pilatos.
III
A clâmide sagrada não pode ingressar
sem mancha no Pretório pagão. Transcorre a Páscoa e a casa do gentio polui com
o seu próprio ar o povo escolhido. Assim, em altos brados, no melo da rua, os
sacerdotes e a turba exaltada clamam, chamando pelo Procurador Romano.
Pilatos está de mau humor. A hora é
demasiadamente matinal para um nobre romano. E, depois, sua mulher o inquieta
com a narrativa de um mau sonho.
Com um gesto negligente, um bocejo de
tédio, a recordar o sonho de Calpúrnia, a mulher de Júlio Cézar, Pontius
Pilatos caminha até a balaustrada do palácio. Alguma coisa lhe diz que se trata
do julgamento de um Justo. Surda inquietação lhe rói a alma.
A multidão saúda-o num clamor,
Que quereis?
Achamos este homem sublevando a nossa
nação, e proibindo dar o tributo a Cézar, e dizendo que ele é o Cristo-Rei.
Pilatos faz subir o acusado.
- És rei?
E Jesus:
- Tu o dizes.
O Procurador Romano volta-se para os príncipes
dos sacerdotes:
- Nada de condenável acho neste
homem,
- Mas ele subleva o povo contra
Cezar, desde a Galileia...
Pilatos evoca a figura de Cézar.
Treme de terror. Mas naquela palavra "Galileia", encontra a sua
salvação. É fácil. Basta declarar-se incompetente. E que Herodes, cuja jurisdição
era a Galileia, assuma a responsabilidade de considerar o mérito da questão.
IV
Jesus é enviado a Herodes. O tetrarca
- narra S. Lucas -folgou muito; porque tinha, havia muito tempo, curiosidade de
ver Jesus, de quem se contavam muitas coisas. Talvez pudesse presenciar algum
milagre.
Os escribas e sacerdotes acusavam,
agitadamente, o Nazareno.
Herodes, não tendo visto nenhum
milagre, achou o caso desinteressante. E, mandando vestir em Jesus uma túnica
branca, por escárnio, reenviou-o a Pontius Pilatos, alegando que o crime tinha
sido praticado na Judéia, é não na Galileia.
V
Não tendo Herodes tomado
conhecimento, a causa tornou ao pretório de Pilatos.
Chamando os príncipes dos sacerdotes
e os magistrados, disse-lhes o aflito magistrado:
-Este homem está inocente. Vide que
Herodes nenhum crime encontrou nele. Como quereis que eu condene?
-Bem se vê que não sois amigo de Cézar!
Como quereis livrar um homem que concita o povo a sublevar contra o Império
Romano?
-Pois bem, -diz Pilatos, estremecendo
ao evocar a figura de Cezar - vou mandar açoitá-lo. Em seguida, eu o trarei à vossa
presença e vos ouvirei.
Assim se fez. Momentos depois
aparecia Jesus na balaustrada, diante da multidão, com uma coroa de espinhos na
cabeça, um manto vermelho, uma cana entre as mãos amarradas e uma expressão de dor
no semblante ensanguentado.
Estais satisfeitos? - perguntava
Pilatos aos acusadores, que ele bem sabia, eram os verdadeiros inimigos de Cézar.
Mas estes respondiam:
À morte! À morte!
VI
Estava preso um perigoso bandido de
nome Barrabás. Esse era um verdadeiro sedicioso. Sua rebeldia chegava ao
extremo de não respeitar a autoridade dos magistrados. De punhos cerrados no
ar, Barrabás rugia e deblaterava. Ameaçava os juízes. Fora encarcerado por
crime contra a ordem, contra a propriedade, contra o pudor, contra a vida do próximo.
Era um assassino cruel, que matava as vítimas quando dormiam, que negava a Deus
e ao Direito.
Pilatos teve uma ideia suprema. Por ocasião
da Páscoa, usava-se soltar criminosos, para que passassem essa festa no seio de
suas famílias.
O sonho da mulher de Pilatos
atormentava o espírito do Procurador Romano. Era preciso tentar ainda uma vez
salvar a Jesus.
Barrabás e Jesus foram colocados em
pé de igualdade. Um diante do outro, o Crime e a Virtude, deviam ser
considerados segundo a mesma medida.
Barrabás era o extremista do Mal. E
Jesus era o extremista do Bem, da Dignidade Humana, da Bondade.
Há, porém, certas épocas de loucura
dos povos em que nos olhos delirantes a Virtude e o Crime se equivalem.
Pilatos socorria-se de um recurso
extremo, sentindo-se incapaz de assumir uma atitude heroica.
Aqui estão Barrabás e Jesus! Devo
soltar um criminoso no dia de hoje: escolhei!
Foi escolhido Barrabás, para que
passasse a Páscoa com a sua família, ele que não respeitava a Páscoa nem
acreditava na família.
Foi então que Pontius Pilatos, num
gesto negligente e fidalgo, mandou vir uma bacia. Os criados despejaram a água
dos jarros.
Pilatos lavou as mãos e enxugou-as
numa alva toalha de linho.
Estava salva a dignidade da toga
romana.
Publicado originalmente n’A OFFENSIVA, em 31 de Janeiro de 1937.
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