quinta-feira, 9 de maio de 2024

O verdadeiro nacionalismo (1954)

 

O verdadeiro nacionalismo (1954)

Plínio Salgado

Entre tantas outras palavras cujo sentido foi inteiramente deturpado, em nosso tempo, essa palavra “nacionalismo” é certamente a que sofreu a maior deturpação. Os intérpretes do nacionalismo fizeram dele um espelho de suas próprias paixões, de seus exageros e de suas insuficiências. Não o tomaram na sua realidade humana, como expressão de um culto pelo grupo natural constituído por frações da humanidade tipicamente diferenciadas. Uns o exaltaram a tal ponto que o tornaram um instrumento de opressão interna e de ameaça externa. Confundindo a Nação com o Estado, os teoristas alemães, a partir de Bluntschli, fizeram do nacionalismo um instrumento de absorção das pessoas humanas e dos outros grupos naturais em que as pessoas se agregam com o objetivo da defesa de seus direitos fundamentais; e confundindo a Nação e o Estado com a Raça, ou com uma ideologia de tendência imperialista, muitos pensadores, filósofos, juristas e homens públicos do nosso tempo transformaram o nacionalismo em constante ameaça contra os povos.

Considerando o nacionalismo sob esses aspectos, surgiram as reações dos que amam a liberdade do Homem e a paz alicerçada em bases jurídicas; mas esses incorreram no erro oposto, o que nos faz lembrar os primeiros tempos do Cristianismo, quando o combate a uma heresia se tornava, no curso polêmico da controvérsia, outra heresia e, às vezes, maior do que a da doutrina adversária.

O erro dos que combatem o nacionalismo exagerado, ou transvertido nas formas destruidoras do verdadeiro nacionalismo, consiste em condenar essa palavra, in limine, sem estabelecer distinções. E, assim procedendo, esses inimigos do nacionalismo desarmam os povos constituídos em grupos humanos nacionais, tirando-lhes a única arma com que se podem defender das agressões e da dominação do nacionalismo deturpado. Fazem, dessa maneira, o jogo do próprio adversário.

Existe ainda outro erro — e esse é o das mentalidades ignaras ou medíocres — que está em tomar o nacionalismo como sinônimo de xenofobia, de jacobinismo, de atitude de repulsa às nações estrangeiras. Esquecem-se de que o grupo natural que chamamos Nação constitui um meio pelo qual estabelecemos as relações comerciais, culturais, jurídicas e morais com os outros grupos nacionais em que se acha diferenciada a unidade humana. Esquecem-se de que, se a colaboração entre as Nações já se apresentava como uma realidade entrevista nos séculos XVI e XVII, por Francisco Vitória e por Grotius, muito mais hoje se impõe, primeiro pela internacionalização do comércio, que principiou a desenvolver-se de maneira acelerada, desde os albores do século XIX; depois pelo instrumental técnico do século XX, que liga os povos pelo avião, pelo rádio, pela televisão, finalmente pelo interconhecimento das condições econômicas, sociais e psicológicas, as quais, denunciando a identidade das aspirações, insinua a adoção de fórmulas solucionadoras de problemas comuns.

De tantos erros concluímos que a palavra nacionalismo precisa ser recolocada na sua verdadeira posição e na sua verdadeira significação.

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Devemos ser nacionalistas? Sim; é a única resposta que cabe a um cristão, uma vez que sustenta o princípio da intangibilidade da pessoa humana e dos grupos naturais de que se servem as mesmas pessoas para defender seus direitos e cumprir seus deveres tendentes a um fim determinado por Deus. A Nação é um grupo natural, uma realidade histórica e social; nela se conjugam e se exprimem os outros grupos naturais. Acima dela, só a realidade — maior do que todas as outras — que é a Religião. Mas se nesta encontramos os princípios fundamentais da liberdade e da responsabilidade do Homem e a sustentação doutrinária da autonomia dos grupos naturais, a começar pela Família, que é o mais importante, então temos de aceitar a Nação e o nacionalismo, como um meio de defesa e garantia de sobrevivência dos direitos individuais e grupais. Combater o nacionalismo é desarmar os grupos naturais e o próprio Homem dos meios materiais, jurídicos e internacionais de sua permanência e intangibilidade. É, ao mesmo tempo, insurgir-se contra a lei de Deus, que diferenciou a unidade humana em expressões particulares, segundo condições geográficas, climáticas, econômicas, culturais, idiomáticas, históricas e temperamentais, o que fez evidentemente para algum fim, o qual não pode ser outro senão a própria defesa do Homem e dos Grupos Naturais, em consequência do equilíbrio de forças pela qual se impede a escravização universal dos seres humanos a uma só potência, que poderá ser inimiga de Deus.

Esse nacionalismo cristão deve ser cultuado. Sem ele não nos defenderemos do cruel materialismo que ameaça o mundo. Esse nacionalismo não deve ser nem exagerado nem superficial. Equilibrado e profundo, justo e lúcido, ele refletirá a perso­nalidade de uma Pátria, constituída pelo conjunto das perso­nalidades congregadas no grupo nacional.

SALGADO, Plínio. Mensagem às pedras do deserto. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, [1954]; transcrito integralmente das páginas 102, 103 e 104.

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