quarta-feira, 8 de maio de 2024

O Maior dos Comunistas (1954)

 

O Maior dos Comunistas (1954)

Plínio Salgado

O maior dos comunistas não pertence ao Comintern ou ao Cominform, ao Consomol ou a outras organizações do partido de Lênin. O maior dos comunistas não pertence sequer às linhas auxiliares que abrem carta de crédito à propaganda marxista e cobrem com sua aparente ingenuidade as manobras do imperialismo vermelho. O maior dos comunistas nunca foi a um Congresso de Viena, nunca assinou o apelo de Estocolmo, nunca tomou parte nas manifestações coletivas pró “petróleo é nosso” ou contra o acordo militar Brasil-Estados Unidos. O maior dos comunistas nunca editou, nem assinou, nem comprou nas bancas um desses vinte e tantos diários que a Rússia mantém em nosso País. O maior dos comunistas nunca fez agitações de rua, nunca interveio nas greves, nunca se preocupou em atacar pela palavra ou pela escrita os governos ou as chamadas classes conservadoras. Mas, apesar de todas essas negativas, é hoje, como foi sempre e como continuará a ser, o maior, o mais eficiente de quantos comunistas andam pelo mundo pregando a doutrina de Marx e a técnica de Lênin.

Porque o maior dos comunistas do mundo é o Espírito Capitalista. Não direi o Capitalismo, que é um sistema econômico, uma tese a ser discutida em capítulo separado. Refiro-me aqui aos fatores psicológicos, que desabrocham do sistema e constituem um estado de alma, uma forma de mentalidade, traduzindo-se em atitudes e ações deletérias cujos efeitos são a dissolvência, a decomposição disso que nos habituamos a denominar Civilização Ocidental ou — por suprema ironia — Civilização Cristã.

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O Espírito Capitalista é o espírito do lucro. Do lucro pelo lucro. Do lucro que se hipertrofiou enriquecendo-se com o adjetivo “extraordinário” que encobre o adjetivo “ilícito”. Do lucro que manobra a grande engrenagem chamada “especulação”. Do lucro que intervém nos costumes da sociedade e interfere no próprio seio das famílias, atacando na raiz a estabi¬lidade econômica dos lares.

O Capitalismo (sistema econômico) adquirindo essa alma tenebrosa, a alma do senhor Grandet, fotografada e filmada pelo gênio de Balzac, tratou de criar, na grande massa dos consumidores de mercadorias, a psicologia específica das filhas do Pai Goriot, outro personagem do grande cronista da Comédia Humana. É a psicologia da “despesa”, subordinada ao imperativo da “moda” e, pouco a pouco, transformada em psicologia da prodigalidade, do esbanjamento, do luxo, da ostentação, dos supremos confortos, das elegâncias, das distinções superfinas.

Criada pelo Capitalismo essa psicologia dos compradores, que domina desde os mais ricos aos remediados e desde estes aos pobres, e lançado o desespero nas classes média e submédia, sequiosas por ostentar os mesmos padrões de vida dos abas¬tados, o Capitalismo pôde vender uma infinidade de artefatos, de instrumentos, de máquinas, de objetos domésticos, não se falando no dilúvio de automóveis, de aparelhos de rádio e televisão, mobiliário variadíssimo e de todos os estilos, tapeçarias, não se falando em roupas masculinas e femininas, peles, perfumes, joias e quinquilharias.

A técnica moderna facultou ao Capitalismo a produção em série dos mais variados produtos e a sua propaganda assoberbante, asfixiante, pelas emissoras de som e de imagens, pelos jornais e revistas, pelos cartazes, pela policromia dos impressos mais-sugestivos.

Mas como, apesar de dominar completamente as multidões compradoras, o Capitalismo precisa vender mais, para lograr mais lucros, o grande comunista (o maior de todos) utiliza-se desse agente despótico e tiranizante que se chama “a moda”. Assim, em primeiro lugar, cria-se a hierarquia dos ídolos modernos. Existem automóveis para todos os preços, desde o de alta grã-finagem até ao de reles exercício funcional, para burocratas e empregados de segunda, terceira e quarta categorias. O desespero dos compradores está na aspiração de serem promovidos de um “jeep” a um chevrolet, de um chevrolet a um dodge, de um dodge a um cadillac. Cada possuidor de um carro se julga o mais infeliz dos homens olhando o carro de outro que traz marca mais nobre e custa mais caro do que o seu.

Do mesmo modo, nessa estúpida hierarquia dos valores sociais, os que possuem aparelhos de rádio, de televisão, vitrolas, geladeiras, aspiradores de pó, máquinas de lavar roupas, enceradeiras elétricas de preços inferiores aos dos seus vizinhos, vivem num estado de permanente neurastenia, tendo-se em conta de deserdados da fortuna, maldizendo os pais que lhes não deixaram herança, os governos ou as empresas particulares que não lhes pagam “o suficiente”, e maldizendo a si mesmos porque não foram capazes de “dar golpes”, e arquitetar negociatas, mercê das quais pudessem ombrear com aqueles e aquelas que aparecem resplendentes nas páginas das revistas da sociedade em fotos impressas sobre papel couchê.

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Verificando, entretanto, o Capitalismo que, mesmo subjugando as multidões de compradores às quais impinge as séries de seus produtos, ainda precisa vender mais, adota duas providências: 1°) - O mesmo carro, a mesma máquina, são lançados cada ano em novo tipo. A diferença está às vezes num parafuso, numa alavanca, num vidro, num pequeno pormenor. O possuidor do tipo 1953 tem vergonha de se apresentar diante do possuidor do tipo 1954. O dono do tipo 1952 sente-se extremamente diminuído. Os dos anos anteriores sofrem na carne uma dessas dores só comparáveis às do homem cuja mulher prevaricou ou cujo filho deu desfalque num Banco. Não há maior degradação, maior prova de decadência do que usar em 1954 alguma máquina de 1944. E temos, assim, novas corridas atrás de novos tipos, novos desesperos, novas promissórias descontadas, novos subornos, novas roubalheiras para um indivíduo não ficar desonrado em face de uma sociedade que só dá valor aos apêndices mecânicos e indumentárias do homem, e nunca ao Homem-Homem, ao Ser Racional, à criatura de Deus, cuja medida do quilate, do peso específico, deve estar na sua capacidade de honradez, de trabalho, de modéstia e de espiritualidade. 2°) - O material empregado nas máquinas, nos artefatos, nos instrumentos diversos deve ser de pouca duração. A sua resistência é calculada para um prazo que obrigue a nova compra. O principal é vender. Cumpre ainda — e isto é o mais importante para o Capitalismo — criar uma psicologia de esbanjamento. Essa é facilitada nas épocas de inflação, de desvalorização, dia a dia, da moeda de um país de economia desorganizada. Gastar, e gastar o mais possível, eis o que o Capitalismo impõe aos seus vassalos, chamados compradores. Que vale um boi para quem tem sete fazendas? As sete fazendas são para os menos desonestos, sete promissórias ou sete “papagaios” dependurados, e para os menos honestos, sete negociatas, ou sete subornos, ou sete gorjetas, numa palavra: sete patifarias.

O Capitalismo, adquirindo a alma negra de Shilok, de Harpagão, de Grandet, coloca na mesma balança o sábio e o argentário, o santo e o grã-fino, o herói e o especulador. O Capitalismo subverteu a ordem do mundo. E como tudo se subordina às coisas materiais, com ausência total da beleza e da grandeza dos padrões da vida simples, as massas humanas, adotando igual critério, clamam, com absoluta lógica, e perfeito espírito de justiça (dentro do materialismo dominante) pela subversão de uma ordem social de monstruosas desigualdades, em que muitíssimos gastam numa noite o que alimentaria uma família num ano, ou despendem num quadro futurista idiota ou num vestido de baile aquilo que resolveria o problema de muitos desgraçados.

Não falamos ainda — o que poderá ser objeto de um capítulo especial, nas mil formas de especulação do Espírito Capitalista, entre as quais a especulação imobiliária. Os preços dos aluguéis das casas e apartamentos são astronômicos. Isso obriga famílias numerosas a habitar em cubículos sem ar (é preciso aproveitar o espaço para o capital render…) e numa promiscuidade como aquelas descritas por Zola no Germinal e pelos que fizeram narrativas a respeito da vida russa sob o bolchevismo, entre as quais o acúmulo de habitantes num mesmo quarto ou casa.

Quer dizer que o Capitalismo está fazendo a mesma coisa que faz o Comunismo na Rússia… As classes média e sub-média, comprimidas pelos preços dos aluguéis, procuram adquirir uma moradia, pagando uma prestação mais ou menos equivalente ao aluguel dos cubículos onde moram. Então, encontram dois tipos de apartamentos: os de preço superior a um milhão de cruzeiros, onde afinal a família se comprimiria; e os constituídos por uma sala, um quarto e uma limitadíssima cozinha.

O Capitalismo constrói para “garçonnières”. A hipocrisia fechou o degradante comércio da prostituição, mas facilitou as transações sexuais multiplicando o número de apartamentos onde cavalheiros podem repousar algumas horas como se estivessem na ilha de Cítera, de sorte que os pais de família, acumulando-se com os filhos e filhas, como sardinhas em lata, contam com ótima vizinhança, cujas relações podem ser utilís-simas para desencaminhar mocinhas de colégios ou de repartições e para mostrar aos rapazes como é que as coisas se fazem…

O tema exige muitas páginas. Paremos, por agora, nestas considerações, diante das quais pergunto aos meus leitores: existe algum comunista que seja mais comunista do que o Capitalismo, neste mundo ocidental que se está decompondo aceleradamente?

SALGADO, Plínio. Mensagem às pedras do deserto. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, [1954]; transcrito integralmente das páginas 35, 36, 37 e 38.


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