O Maior dos Comunistas (1954)
Plínio Salgado
O maior dos
comunistas não pertence ao Comintern ou ao Cominform, ao Consomol ou a outras organizações
do partido de Lênin. O maior dos comunistas não pertence sequer às linhas
auxiliares que abrem carta de crédito à propaganda marxista e cobrem com sua
aparente ingenuidade as manobras do imperialismo vermelho. O maior dos
comunistas nunca foi a um Congresso de Viena, nunca assinou o apelo de
Estocolmo, nunca tomou parte nas manifestações coletivas pró “petróleo é nosso”
ou contra o acordo militar Brasil-Estados Unidos. O maior dos comunistas nunca
editou, nem assinou, nem comprou nas bancas um desses vinte e tantos diários
que a Rússia mantém em nosso País. O maior dos comunistas nunca fez agitações
de rua, nunca interveio nas greves, nunca se preocupou em atacar pela palavra
ou pela escrita os governos ou as chamadas classes conservadoras. Mas, apesar
de todas essas negativas, é hoje, como foi sempre e como continuará a ser, o
maior, o mais eficiente de quantos comunistas andam pelo mundo pregando a
doutrina de Marx e a técnica de Lênin.
Porque o
maior dos comunistas do mundo é o Espírito Capitalista. Não direi o
Capitalismo, que é um sistema econômico, uma tese a ser discutida em capítulo
separado. Refiro-me aqui aos fatores psicológicos, que desabrocham do sistema e
constituem um estado de alma, uma forma de mentalidade, traduzindo-se em atitudes
e ações deletérias cujos efeitos são a dissolvência, a decomposição disso que
nos habituamos a denominar Civilização Ocidental ou — por suprema ironia —
Civilização Cristã.
* * *
O Espírito
Capitalista é o espírito do lucro. Do lucro pelo lucro. Do lucro que se
hipertrofiou enriquecendo-se com o adjetivo “extraordinário” que encobre o
adjetivo “ilícito”. Do lucro que manobra a grande engrenagem chamada
“especulação”. Do lucro que intervém nos costumes da sociedade e interfere no
próprio seio das famílias, atacando na raiz a estabi¬lidade econômica dos
lares.
O Capitalismo
(sistema econômico) adquirindo essa alma tenebrosa, a alma do senhor Grandet,
fotografada e filmada pelo gênio de Balzac, tratou de criar, na grande massa
dos consumidores de mercadorias, a psicologia específica das filhas do Pai
Goriot, outro personagem do grande cronista da Comédia Humana. É a psicologia
da “despesa”, subordinada ao imperativo da “moda” e, pouco a pouco,
transformada em psicologia da prodigalidade, do esbanjamento, do luxo, da
ostentação, dos supremos confortos, das elegâncias, das distinções superfinas.
Criada pelo
Capitalismo essa psicologia dos compradores, que domina desde os mais ricos aos
remediados e desde estes aos pobres, e lançado o desespero nas classes média e
submédia, sequiosas por ostentar os mesmos padrões de vida dos abas¬tados, o
Capitalismo pôde vender uma infinidade de artefatos, de instrumentos, de
máquinas, de objetos domésticos, não se falando no dilúvio de automóveis, de
aparelhos de rádio e televisão, mobiliário variadíssimo e de todos os estilos,
tapeçarias, não se falando em roupas masculinas e femininas, peles, perfumes,
joias e quinquilharias.
A técnica
moderna facultou ao Capitalismo a produção em série dos mais variados produtos
e a sua propaganda assoberbante, asfixiante, pelas emissoras de som e de
imagens, pelos jornais e revistas, pelos cartazes, pela policromia dos
impressos mais-sugestivos.
Mas como,
apesar de dominar completamente as multidões compradoras, o Capitalismo precisa
vender mais, para lograr mais lucros, o grande comunista (o maior de todos)
utiliza-se desse agente despótico e tiranizante que se chama “a moda”. Assim,
em primeiro lugar, cria-se a hierarquia dos ídolos modernos. Existem automóveis
para todos os preços, desde o de alta grã-finagem até ao de reles exercício
funcional, para burocratas e empregados de segunda, terceira e quarta
categorias. O desespero dos compradores está na aspiração de serem promovidos
de um “jeep” a um chevrolet, de um chevrolet a um dodge, de um dodge a um
cadillac. Cada possuidor de um carro se julga o mais infeliz dos homens olhando
o carro de outro que traz marca mais nobre e custa mais caro do que o seu.
Do mesmo
modo, nessa estúpida hierarquia dos valores sociais, os que possuem aparelhos
de rádio, de televisão, vitrolas, geladeiras, aspiradores de pó, máquinas de
lavar roupas, enceradeiras elétricas de preços inferiores aos dos seus
vizinhos, vivem num estado de permanente neurastenia, tendo-se em conta de
deserdados da fortuna, maldizendo os pais que lhes não deixaram herança, os
governos ou as empresas particulares que não lhes pagam “o suficiente”, e
maldizendo a si mesmos porque não foram capazes de “dar golpes”, e arquitetar
negociatas, mercê das quais pudessem ombrear com aqueles e aquelas que aparecem
resplendentes nas páginas das revistas da sociedade em fotos impressas sobre
papel couchê.
* * *
Verificando,
entretanto, o Capitalismo que, mesmo subjugando as multidões de compradores às
quais impinge as séries de seus produtos, ainda precisa vender mais, adota duas
providências: 1°) - O mesmo carro, a mesma máquina, são lançados cada ano em
novo tipo. A diferença está às vezes num parafuso, numa alavanca, num vidro,
num pequeno pormenor. O possuidor do tipo 1953 tem vergonha de se apresentar
diante do possuidor do tipo 1954. O dono do tipo 1952 sente-se extremamente
diminuído. Os dos anos anteriores sofrem na carne uma dessas dores só
comparáveis às do homem cuja mulher prevaricou ou cujo filho deu desfalque num
Banco. Não há maior degradação, maior prova de decadência do que usar em 1954
alguma máquina de 1944. E temos, assim, novas corridas atrás de novos tipos,
novos desesperos, novas promissórias descontadas, novos subornos, novas
roubalheiras para um indivíduo não ficar desonrado em face de uma sociedade que
só dá valor aos apêndices mecânicos e indumentárias do homem, e nunca ao
Homem-Homem, ao Ser Racional, à criatura de Deus, cuja medida do quilate, do
peso específico, deve estar na sua capacidade de honradez, de trabalho, de modéstia
e de espiritualidade. 2°) - O material empregado nas máquinas, nos artefatos,
nos instrumentos diversos deve ser de pouca duração. A sua resistência é
calculada para um prazo que obrigue a nova compra. O principal é vender. Cumpre
ainda — e isto é o mais importante para o Capitalismo — criar uma psicologia de
esbanjamento. Essa é facilitada nas épocas de inflação, de desvalorização, dia
a dia, da moeda de um país de economia desorganizada. Gastar, e gastar o mais
possível, eis o que o Capitalismo impõe aos seus vassalos, chamados
compradores. Que vale um boi para quem tem sete fazendas? As sete fazendas são
para os menos desonestos, sete promissórias ou sete “papagaios” dependurados, e
para os menos honestos, sete negociatas, ou sete subornos, ou sete gorjetas,
numa palavra: sete patifarias.
O
Capitalismo, adquirindo a alma negra de Shilok, de Harpagão, de Grandet, coloca
na mesma balança o sábio e o argentário, o santo e o grã-fino, o herói e o
especulador. O Capitalismo subverteu a ordem do mundo. E como tudo se subordina
às coisas materiais, com ausência total da beleza e da grandeza dos padrões da
vida simples, as massas humanas, adotando igual critério, clamam, com absoluta
lógica, e perfeito espírito de justiça (dentro do materialismo dominante) pela subversão
de uma ordem social de monstruosas desigualdades, em que muitíssimos gastam
numa noite o que alimentaria uma família num ano, ou despendem num quadro
futurista idiota ou num vestido de baile aquilo que resolveria o problema de
muitos desgraçados.
Não falamos
ainda — o que poderá ser objeto de um capítulo especial, nas mil formas de
especulação do Espírito Capitalista, entre as quais a especulação imobiliária.
Os preços dos aluguéis das casas e apartamentos são astronômicos. Isso obriga
famílias numerosas a habitar em cubículos sem ar (é preciso aproveitar o espaço
para o capital render…) e numa promiscuidade como aquelas descritas por Zola no
Germinal e pelos que fizeram narrativas a respeito da vida russa sob o
bolchevismo, entre as quais o acúmulo de habitantes num mesmo quarto ou casa.
Quer dizer
que o Capitalismo está fazendo a mesma coisa que faz o Comunismo na Rússia… As
classes média e sub-média, comprimidas pelos preços dos aluguéis, procuram
adquirir uma moradia, pagando uma prestação mais ou menos equivalente ao
aluguel dos cubículos onde moram. Então, encontram dois tipos de apartamentos:
os de preço superior a um milhão de cruzeiros, onde afinal a família se
comprimiria; e os constituídos por uma sala, um quarto e uma limitadíssima cozinha.
O Capitalismo
constrói para “garçonnières”. A hipocrisia fechou o degradante comércio da
prostituição, mas facilitou as transações sexuais multiplicando o número de
apartamentos onde cavalheiros podem repousar algumas horas como se estivessem
na ilha de Cítera, de sorte que os pais de família, acumulando-se com os filhos
e filhas, como sardinhas em lata, contam com ótima vizinhança, cujas relações
podem ser utilís-simas para desencaminhar mocinhas de colégios ou de
repartições e para mostrar aos rapazes como é que as coisas se fazem…
O tema exige
muitas páginas. Paremos, por agora, nestas considerações, diante das quais
pergunto aos meus leitores: existe algum comunista que seja mais comunista do
que o Capitalismo, neste mundo ocidental que se está decompondo aceleradamente?
SALGADO, Plínio. Mensagem às pedras do deserto. Rio de
Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, [1954]; transcrito integralmente das
páginas 35, 36, 37 e 38.
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