Esclarecimento: A publicação do Artigo abaixo só foi
possível graças à generosa colaboração do Prof. Paulo Fernando, conhecido Líder
Pró-Vida, profundo pesquisador da História do Brasil, possuidor da maior
Pliniana existente, que nos permitiu o acesso a sua Hemeroteca; e, atualmente,
é Deputado Federal pelo Distrito Federal. Aos que desejarem conhecer mais o
trabalho do Prof. Paulo Fernando indicamos: https://www.instagram.com/paulofernandodf/
A REVOLUÇÃO DA ANTA (entrevista de Plínio Salgado,
13/03/1927)
- Uma entrevista para O JORNAL sobre a Anta e o antismo vem exatamente
ao encontro de um meu desejo. Tenho mesmo interesse em falar ao Rio de Janeiro sobre
este assunto, que reputo da mais alta relevância para o Brasil. À primeira
vista, tudo parecerá aos intelectuais uma lírica patriotada. Parecerá que o movimento
da Anta nenhuma relação terá com a nossa vida mental. E tais considerações serão
bem naturais, uma vez que a nossa literatura perdeu, completamente, o senso das
realidades.
O RIO ENTENDERÁ SÃO PAULO?
É preciso notar: observadas em conjunto,
diferem profundamente as mentalidades das nossas duas capitais. Isso
dificultará o entendimento a que deveremos chegar. Cercada de montanhas,
olhando o mar, a cidade do Rio de Janeiro só entra em contato com a realidade
brasileira através do morro da Favela e das piadas e trocadilhos mestiço
largamente exportados pelas províncias. Ia-me esquecendo: há aí também a “macumba”,
como expressão racial... E o Dr. Jacarandá, e o cidadão Pingó, como expressão política,
sistematizada desde a Saúde ao partidarismo municipal... Mas essa vida não é vivida
pelos intelectuais que respiram ares da França. Pois tudo o mais, desde João VI
- que trouxe a cidade a bordo — tem um caráter de adaptação e de
artificialismo.
Cidade burocrata e oficial, a obra da
infiltração estrangeira, desde a Confederação dos Tamoios, têm sido aí tão
dissimulada e insinuante, que não deu lugar a uma reação forte de nativismo.
Fatalidade político-administrativa.
Aqui as massas imigratórias entram de
supetão, com tal violência, que nos puseram de pé. No panorama dos arranha-céus,
acordou a alma do povo “arrogante e sem respeito, perturbador da paz dos
continentes”, a que alude o cronista. Nos intervalos dos apitos das fábricas,
São Paulo põe o ouvido no peito do sertão: é o ritmo da vida nacional.
As ressonâncias dessa vida chegam aí
no Rio com um acento político ou literário. Indiretamente. Essa cidade conhece as
“consequências brasileiras”, não as “causas brasileiras”. O Brasil lhe parece como
uma fachada misteriosa. Quando muito, será a visão panorâmica da poesia de
Ronald.
Distinguem-se fundamentalmente as mentalidades
do litoral e do interior. Pois, em relação ao país, uma se forma de fora para dentro,
a outra de dentro para fora. Na capital da República, a disparidade com a província
é agravada pelos hábitos burocratas e de sociedade, de oficialismo e contato
forçado com as culturas e costumes exóticos. A inteligência requinta-se
apurando a faculdade crítica, sobretudo o senso de comparação e de ecletismo, em
detrimento da faculdade criadora. Possibilita-se a ironiazinha sutil das
senilidades precoces, que é a raiva piedosa contra os que sabem ainda crer.
Floresce, absurdamente, no Brasil, um
espírito como o de Machado de Assis. Ele não poderia sair senão do Rio, que
respirava então por Stendhal, como hoje respira pelas últimas brochuras
europeias. Na mais recente geração intelectual, incapaz de criar, como observa cruelmente
Rodrigo de Andrade no largo e raivoso elogio que fez no O JORNAL à intelectualidade paulista, há, mais do que o espírito de
indecisão e angústia da civilização ocidental, um cheiro de senectude humanística,
o bolor da sombria biblioteca do Sr. D’Astarak. Aquele sorriso cretino de Anatole
diante da grandeza do inexplicável; aquela risada mesentérica de Eça única ação
de que foi capaz diante da derrocada do seu país; e, principalmente, o
esnobismo displicente e tecido de uma elegância espiritual nociva, que veio de Byron
e Oscar Wilde e rebentou no almofadismo letrado dos países velhos, tudo isso
influi aí no Rio para que poucos compreendam a nossa ingenuidade de crentes. Acredito,
entretanto, que os jovens escritores do Rio não se magoarão com essa franqueza
paulista de quem lhes quer muito bem. E, quando não concordem, pelo menos, levem
estas coisas em conta de nossa imensa ingenuidade de provincianos...
AOS VINTE ESTADOS DO BRASIL E AO ACRE TAMBÉM...
Vou contar a história da Anta, não só
ao Rio, mas às vinte províncias, nossas irmãs, que respiram, como nós o sol da
América. Algumas bem saturadas de espírito clássico e latim com rapé, velhas
igrejas lusitanas, velhas academias coimbrãs, sonetos & cia. Mas todas
unidas por este mesmo sentimento
brasileiro que as colocará de pé em luta contra a ditadura de cem anos dos pensadores e artistas
estrangeiros. Contra nosso regime colonial.
A VOZ DO OESTE
A centelha do movimento da Anta
faiscou uma noite, no decorrer de uma conversa entre mim, Alarico Silveira e
Raul Bopp. A propósito de uma alusão que fiz a um artigo de Alarico (grande
espírito e profundo conhecedor de coisas nossas), falou-nos ele da marcha
bandeirante, no rumo do oeste, sugerindo as razões étnicas por que se
encaminharam os paulistas naquela direção. Para ele, era uma saudade ancestral dos planaltos bolivianos, que o sangue índio implantou
no sangue português, nas primeiras núpcias de
raças, a que presidiu João Ramalho. Os tupis tinham vindo daquela
região.
CHE TAPYA!
Referindo-se à marcha pré-colombiana e
à origem do nome dessa grande tribo, falou-nos do totem da raça, a anta ou o
tapyr — o maior mamífero da América e o único grande animal genuinamente
americano do sul — totem largamente proclamado como tal pelos guerreiros, com
os brados de “che tapya”, que vieram
atroando as brenhas, naquela procura épica e predestinada do Atlântico, por
onde vinham, também numa procura épica de continentes, as caravelas lusitanas.
Ao passo que ouvíamos
interessadíssimos o notável paulista, eu, que andava procurando a força que
possibilitou a unidade nacional, a fim de usar dela como agente destruidor da
nossa subserviência ao estrangeiro, ia sentido uma íntima revelação.
A MATEMÁTICA DOS SENTIDOS RACIAIS
Nem os sistemas hidrográficos ou
orográficos; nem a unidade do processo moral da formação brasileira; nem as
contingências políticas, me eram mais sugestivas do que o próprio sangue Tupi,
proveniente das Ibiturunas (Andes), que eu via como um “denominador comum” das
diferentes expressões humanas dos cruzamentos. Era bem verdade que não somente
o Tupi entrou na formação brasileira, uma vez que havia outras tribos
selvagens, que não eram tupis; mas o símbolo servia e podia abranger todas as
famílias autóctones, e ser tomado como “senha” de um vigoroso movimento nativo.
Pois, em toda parte, víamos o índio: Poty, no norte; Tibiriçá, no centro, e São
Sepé, no sul.
ESCRÚPULOS DA TRIBO VERDAMARELA
Quando eu e Bopp falamos da Anta,
nossos amigos verdamarelos puseram o bicho de quarentena. Tomaram-no, a
princípio, como expressivo de uma função restritiva de preconceito racial.
Espíritos irmanados no mesmo desejo e na mesma fé, Menotti Del Picchia, Cassiano
Ricardo, Motta Filho, Genolino Amado, Raul Bopp e eu, costumávamos discutir como
único intuito de chegarmos a um acordo. Na discussão tudo se esclarece. Não brigamos,
mesmo quando usamos a violência no terreno das ideias. Espírito largo de
tolerância. Acordo que estabelece desacordo. Até mesmo os que estão fora
merecem o nosso respeito. Divergimos, por exemplo, em muitos pontos, do Mário
de Andrade e votamos-lhe (de minha parte fervorosamente), uma grande admiração. Pregamos tacapadas no Oswald
de Andrade, que nos agride também no seu rodapé do “Jornal do Commercio”, e, à
noite, confraternizamos em palestras amigas na sala acolhedora do “Correio
Paulistano”. Há tempos, Prudente de Moraes, neto, disse mal de um livro meu, e
em correspondência que temos trocado, ele ficou sabendo que eu não faço questão
de ser um grande escritor. Pois, se me interessa mais a humanidade do que os
meus escritos, por que hei de amar mais a estes do que às minhas ideias? E,
porque assim pensamos aqui, tivemos uma polêmica a respeito da Anta.
Discutiu-se à beça. No fim, a anta foi aceita, mas sem vencidos nem vencedores.
TUPYRETAMA
Aqui caberia um artigo de cinco
colunas para mostrar a área geográfica abrangida pela influência tupi. E a área
moral. E a área nos domínios da política, da estética e dos costumes, etc. Mas
já estou comendo muito espaço. Deixo a sugestão.
CENSURA
Ocorre-me aqui Ratzel, um lindo
pensamento de Greef e todo um livro de José de Vasconcelos. Só mesmo num tratado
ou num manifesto 21 tiros.
NECESSIDADE DA TIRANIA DO SERTÃO
Para mim, o “Facundo”, de Sarmiento,
tomava um novo sentido. Eu via o homem brotar da Terra e avançar para a cidade.
Eu via a grande cortesã, visionada pelo profeta de Pathmos, invadida por uma
manada de antas arrasadoras do cosmopolitismo, da crítica negativista, da
falsidade das atitudes e, principalmente, dessa incapacidade de crer,
remanescente de uma educação humanista e esnobe. Revoltava-me contra todos os
passivos: desde os que se aferram às fórmulas velhas da filosofia, da política
e da estética, até os que fazem arte nacional através de Marinetti e Max Jacob.
Indignava-me a poesia turista de Cendrars; os vícios de Cocteau, Apollinaire,
Morand; a macaqueação ultraísta e o estado “dadá” de espírito; e, mais ainda,
as contrafações de modernidade, em poetas ainda com prejuízos tangíveis do
parnasianismo e do simbolismo. Os gestos, mal vestidos de atualismo, de um ingurgitamento
romântico a Rousseau; o romantismo sensorial dos impressionismos “torre de
marfim”: o preciosismo acadêmico geometrizando-se diferente no teorema cubista,
submetido a um princípio e realizado sob preconceitos processuais. Em tudo, o
predomínio de mil Lobões praxistas, desses Lobões cujo senso do direito nunca
passou do rito e nos quais, por certo, a alta finalidade da estética jamais
iria além da norma consagrada no “boulevard”. Já não quero falar do panorama
político-social, do qual tratarei mais tarde. Mas foi assim conjecturando que o
li meu “nheengassu” que desencadeou a discussão que se tornou base do acordo em
que hoje estamos em São Paulo de desenvolver uma ação nova no Brasil. Interpretando-se
com novo sentido “Os Sertões”, de Euclides, e o “Facundo” de Sarmiento.
PORQUE O INDIO
Escrevi, em um dos meus artigos, o
seguinte:
“Eu ainda não vi o Brasil vivo e
pensante: o que eu tenho visto é uma Europa viva e pensante vivendo e pensando
o que nós chamamos de nossa vida e o nosso pensamento. Mas, há uma outra vida e
um outro pensamento, que devemos revelar ao mundo; e esse é o Brasil vivo e pensante
que dorme pesadamente sobre uma montanha de livros e que precisamos despertar
porque se aproxima o momento da sua fala
sem haver consciência, precisamos libertar-nos de todas as contribuições de
consciência alheia. Como símbolo da ação que
temos de desenvolver, tomamos o totem de uma raça que, objetivamente,
desapareceu, porém que é uma incontestável realidade na nossa formação étnica.
E não se confunda formação étnica com formação nacional, que é outra coisa
decorrente desse fator e de outros ainda. E se nos perguntarem porque tomamos o
índio, diremos que pela sua virgindade a nos ensinar, constantemente que, não
tendo nós ainda pensado pelas nossas cabeças, podemos fazê-lo sem compromissos
com as velhas civilizações. Responderemos ainda que, pela nenhuma contribuição
cultural e civilizadora que ele nos trouxe à formação nacional, pode a nação
dizer-se sua descendente, sem submissão histórica, até sem gratidão, o que a faz
mais livre. E foi justamente esse senso de individualismo nacional que ensinou
as clãs primitivas a se dizerem descendentes de bichos: para que pudessem fazer
sua eclosão com uma força de liberdade selvagem.
A CIVILIZAÇÃO DIFERENTE
Depois, declarei:
“Nós
queremos criar uma nova mentalidade, não desenvolvida exclusivamente sob
o influxo da cultura universal, mas respirando nesta, com raízes na terra. E
quando digo “terra”, quero abranger “meio cósmico e étnico”.
Não sei ainda “como será” a cultura
americana. Aos gênios do futuro compete responder-nos a angustiada pergunta.
Não podendo alcançá-los, queremos comovidamente anunciá-los ao Mundo.”
NÃO SE TRATA DO INDIANISMO
Escrevi esta frase 17 vezes em cinco
artigos. Mas escrevo ainda mais uma vez. Não se trata de indianismo.
O que queremos é um Brasil masculino,
que tenha a iniciativa dos atos fecundantes. Pois há povos masculinos, que
fecundam, e povos femininos, que são fecundados. Como há espíritos femininos,
que se emprenham pelo ouvido. Queremos, pois, um Brasil brasileiro. Não faço
isso por patriotismo, mas por humanidade. Pois vejo que a civilização ocidental
europeia faliu. Já nada se espera dela. Temos (e quando falo temos quero
abranger vários séculos futuros), temos que criar uma civilização em que talvez
o gênero humano seja mais feliz. Isso
parece pilhéria, aos espíritos (como a maior parte dos intelectuais
brasileiros), que esperam sempre o resultado do que se dá em outros países. Mas
creio firmemente que não o é. Ponho uma grande fé na “raça cósmica” de que fala
José de Vasconcelos. Ela poderá dizer a última palavra.
Voltemos à sabedoria da infância. Por que
nascermos velhos? A Europa é uma velha caduca, nós somos um povo criança.
Declaremos à velha que somos filho do índio como o índio era da anta. E nada
temos a ver com gente estranha. O movimento da Anta é de ação. Ação verdamarela
de independência. Sentir diretamente, dizer diretamente. Perder essa noção do ridículo,
ministrada por estrangeiros e inimigos, essa noção que nos fez perder o brio
nacional. Não mais dizermos que somos latinos. Isso é política que nos prende eternamente à Europa.
E onde já se viu caboclo e mulato latino? Acabemos com esse respeito
supersticioso pelas coisas que vêm de fora. Sejamos brasileiros para sermos
dignos da Humanidade.
Publicado originalmente n’O Jornal, Rio de Janeiro, 13 de março
de 1927.
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