sexta-feira, 16 de agosto de 2024

A REVOLUÇÃO DA ANTA (13/03/1927)

 

Esclarecimento: A publicação do Artigo abaixo só foi possível graças à generosa colaboração do Prof. Paulo Fernando, conhecido Líder Pró-Vida, profundo pesquisador da História do Brasil, possuidor da maior Pliniana existente, que nos permitiu o acesso a sua Hemeroteca; e, atualmente, é Deputado Federal pelo Distrito Federal. Aos que desejarem conhecer mais o trabalho do Prof. Paulo Fernando indicamos: https://www.instagram.com/paulofernandodf/

A REVOLUÇÃO DA ANTA (entrevista de Plínio Salgado, 13/03/1927)

- Uma entrevista para O JORNAL sobre a Anta e o antismo vem exatamente ao encontro de um meu desejo. Tenho mesmo interesse em falar ao Rio de Janeiro sobre este assunto, que reputo da mais alta relevância para o Brasil. À primeira vista, tudo parecerá aos intelectuais uma lírica patriotada. Parecerá que o movimento da Anta nenhuma relação terá com a nossa vida mental. E tais considerações serão bem naturais, uma vez que a nossa literatura perdeu, completamente, o senso das realidades.

O RIO ENTENDERÁ SÃO PAULO?

 É preciso notar: observadas em conjunto, diferem profundamente as mentalidades das nossas duas capitais. Isso dificultará o entendimento a que deveremos chegar. Cercada de montanhas, olhando o mar, a cidade do Rio de Janeiro só entra em contato com a realidade brasileira através do morro da Favela e das piadas e trocadilhos mestiço largamente exportados pelas províncias. Ia-me esquecendo: há aí também a “macumba”, como expressão racial... E o Dr. Jacarandá, e o cidadão Pingó, como expressão política, sistematizada desde a Saúde ao partidarismo municipal... Mas essa vida não é vivida pelos intelectuais que respiram ares da França. Pois tudo o mais, desde João VI - que trouxe a cidade a bordo — tem um caráter de adaptação e de artificialismo.

Cidade burocrata e oficial, a obra da infiltração estrangeira, desde a Confederação dos Tamoios, têm sido aí tão dissimulada e insinuante, que não deu lugar a uma reação forte de nativismo. Fatalidade político-administrativa.

Aqui as massas imigratórias entram de supetão, com tal violência, que nos puseram de pé. No panorama dos arranha-céus, acordou a alma do povo “arrogante e sem respeito, perturbador da paz dos continentes”, a que alude o cronista. Nos intervalos dos apitos das fábricas, São Paulo põe o ouvido no peito do sertão: é o ritmo da vida nacional.

As ressonâncias dessa vida chegam aí no Rio com um acento político ou literário. Indiretamente. Essa cidade conhece as “consequências brasileiras”, não as “causas brasileiras”. O Brasil lhe parece como uma fachada misteriosa. Quando muito, será a visão panorâmica da poesia de Ronald.

Distinguem-se fundamentalmente as mentalidades do litoral e do interior. Pois, em relação ao país, uma se forma de fora para dentro, a outra de dentro para fora. Na capital da República, a disparidade com a província é agravada pelos hábitos burocratas e de sociedade, de oficialismo e contato forçado com as culturas e costumes exóticos. A inteligência requinta-se apurando a faculdade crítica, sobretudo o senso de comparação e de ecletismo, em detrimento da faculdade criadora. Possibilita-se a ironiazinha sutil das senilidades precoces, que é a raiva piedosa contra os que sabem ainda crer.

Floresce, absurdamente, no Brasil, um espírito como o de Machado de Assis. Ele não poderia sair senão do Rio, que respirava então por Stendhal, como hoje respira pelas últimas brochuras europeias. Na mais recente geração intelectual, incapaz de criar, como observa cruelmente Rodrigo de Andrade no largo e raivoso elogio que fez no O JORNAL à intelectualidade paulista, há, mais do que o espírito de indecisão e angústia da civilização ocidental, um cheiro de senectude humanística, o bolor da sombria biblioteca do Sr. D’Astarak. Aquele sorriso cretino de Anatole diante da grandeza do inexplicável; aquela risada mesentérica de Eça única ação de que foi capaz diante da derrocada do seu país; e, principalmente, o esnobismo displicente e tecido de uma elegância espiritual nociva, que veio de Byron e Oscar Wilde e rebentou no almofadismo letrado dos países velhos, tudo isso influi aí no Rio para que poucos compreendam a nossa ingenuidade de crentes. Acredito, entretanto, que os jovens escritores do Rio não se magoarão com essa franqueza paulista de quem lhes quer muito bem. E, quando não concordem, pelo menos, levem estas coisas em conta de nossa imensa ingenuidade de provincianos...

AOS VINTE ESTADOS DO BRASIL E AO ACRE TAMBÉM...

Vou contar a história da Anta, não só ao Rio, mas às vinte províncias, nossas irmãs, que respiram, como nós o sol da América. Algumas bem saturadas de espírito clássico e latim com rapé, velhas igrejas lusitanas, velhas academias coimbrãs, sonetos & cia. Mas todas unidas  por este mesmo sentimento brasileiro que as colocará de pé em luta contra a ditadura de  cem anos dos pensadores e artistas estrangeiros. Contra nosso regime colonial.

A VOZ DO OESTE

A centelha do movimento da Anta faiscou uma noite, no decorrer de uma conversa entre mim, Alarico Silveira e Raul Bopp. A propósito de uma alusão que fiz a um artigo de Alarico (grande espírito e profundo conhecedor de coisas nossas), falou-nos ele da marcha bandeirante, no rumo do oeste, sugerindo as razões étnicas por que se encaminharam os paulistas naquela direção. Para ele, era uma saudade ancestral dos  planaltos bolivianos, que o sangue índio implantou no sangue português, nas primeiras núpcias de  raças, a que presidiu João Ramalho. Os tupis tinham vindo daquela região.

CHE TAPYA!

Referindo-se à marcha pré-colombiana e à origem do nome dessa grande tribo, falou-nos do totem da raça, a anta ou o tapyr — o maior mamífero da América e o único grande animal genuinamente americano do sul — totem largamente proclamado como tal pelos guerreiros, com os brados de “che  tapya”, que vieram atroando as brenhas, naquela procura épica e predestinada do Atlântico, por onde vinham, também numa procura épica de continentes, as caravelas lusitanas.

Ao passo que ouvíamos interessadíssimos o notável paulista, eu, que andava procurando a força que possibilitou a unidade nacional, a fim de usar dela como agente destruidor da nossa subserviência ao estrangeiro, ia sentido uma íntima revelação.

A MATEMÁTICA DOS SENTIDOS RACIAIS

Nem os sistemas hidrográficos ou orográficos; nem a unidade do processo moral da formação brasileira; nem as contingências políticas, me eram mais sugestivas do que o próprio sangue Tupi, proveniente das Ibiturunas (Andes), que eu via como um “denominador comum” das diferentes expressões humanas dos cruzamentos. Era bem verdade que não somente o Tupi entrou na formação brasileira, uma vez que havia outras tribos selvagens, que não eram tupis; mas o símbolo servia e podia abranger todas as famílias autóctones, e ser tomado como “senha” de um vigoroso movimento nativo. Pois, em toda parte, víamos o índio: Poty, no norte; Tibiriçá, no centro, e São Sepé, no sul.

ESCRÚPULOS DA TRIBO VERDAMARELA

Quando eu e Bopp falamos da Anta, nossos amigos verdamarelos puseram o bicho de quarentena. Tomaram-no, a princípio, como expressivo de uma função restritiva de preconceito racial. Espíritos irmanados no mesmo desejo e na mesma fé, Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo, Motta Filho, Genolino Amado, Raul Bopp e eu, costumávamos discutir como único intuito de chegarmos a um acordo. Na discussão tudo se esclarece. Não brigamos, mesmo quando usamos a violência no terreno das ideias. Espírito largo de tolerância. Acordo que estabelece desacordo. Até mesmo os que estão fora merecem o nosso respeito. Divergimos, por exemplo, em muitos pontos, do Mário de Andrade e votamos-lhe (de minha parte fervorosamente), uma  grande admiração. Pregamos tacapadas no Oswald de Andrade, que nos agride também no seu rodapé do “Jornal do Commercio”, e, à noite, confraternizamos em palestras amigas na sala acolhedora do “Correio Paulistano”. Há tempos, Prudente de Moraes, neto, disse mal de um livro meu, e em correspondência que temos trocado, ele ficou sabendo que eu não faço questão de ser um grande escritor. Pois, se me interessa mais a humanidade do que os meus escritos, por que hei de amar mais a estes do que às minhas ideias? E, porque assim pensamos aqui, tivemos uma polêmica a respeito da Anta. Discutiu-se à beça. No fim, a anta foi aceita, mas sem vencidos nem vencedores.

TUPYRETAMA

Aqui caberia um artigo de cinco colunas para mostrar a área geográfica abrangida pela influência tupi. E a área moral. E a área nos domínios da política, da estética e dos costumes, etc. Mas já estou comendo muito espaço. Deixo a sugestão.

CENSURA

Ocorre-me aqui Ratzel, um lindo pensamento de Greef e todo um livro de José de Vasconcelos. Só mesmo num tratado ou num manifesto 21 tiros.

NECESSIDADE DA TIRANIA DO SERTÃO

Para mim, o “Facundo”, de Sarmiento, tomava um novo sentido. Eu via o homem brotar da Terra e avançar para a cidade. Eu via a grande cortesã, visionada pelo profeta de Pathmos, invadida por uma manada de antas arrasadoras do cosmopolitismo, da crítica negativista, da falsidade das atitudes e, principalmente, dessa incapacidade de crer, remanescente de uma educação humanista e esnobe. Revoltava-me contra todos os passivos: desde os que se aferram às fórmulas velhas da filosofia, da política e da estética, até os que fazem arte nacional através de Marinetti e Max Jacob. Indignava-me a poesia turista de Cendrars; os vícios de Cocteau, Apollinaire, Morand; a macaqueação ultraísta e o estado “dadá” de espírito; e, mais ainda, as contrafações de modernidade, em poetas ainda com prejuízos tangíveis do parnasianismo e do simbolismo. Os gestos, mal vestidos de atualismo, de um ingurgitamento romântico a Rousseau; o romantismo sensorial dos impressionismos “torre de marfim”: o preciosismo acadêmico geometrizando-se diferente no teorema cubista, submetido a um princípio e realizado sob preconceitos processuais. Em tudo, o predomínio de mil Lobões praxistas, desses Lobões cujo senso do direito nunca passou do rito e nos quais, por certo, a alta finalidade da estética jamais iria além da norma consagrada no “boulevard”. Já não quero falar do panorama político-social, do qual tratarei mais tarde. Mas foi assim conjecturando que o li meu “nheengassu” que desencadeou a discussão que se tornou base do acordo em que hoje estamos em São Paulo de desenvolver uma ação nova no Brasil. Interpretando-se com novo sentido “Os Sertões”, de Euclides, e o “Facundo” de Sarmiento.

PORQUE O INDIO

Escrevi, em um dos meus artigos, o seguinte:

“Eu ainda não vi o Brasil vivo e pensante: o que eu tenho visto é uma Europa viva e pensante vivendo e pensando o que nós chamamos de nossa vida e o nosso pensamento. Mas, há uma outra vida e um outro pensamento, que devemos revelar ao mundo; e esse é o Brasil vivo e pensante que dorme pesadamente sobre uma montanha de livros e que precisamos despertar porque se aproxima o  momento da sua fala sem haver consciência, precisamos libertar-nos de todas as contribuições de consciência alheia. Como símbolo da ação que  temos de desenvolver, tomamos o totem de uma raça que, objetivamente, desapareceu, porém que é uma incontestável realidade na nossa formação étnica. E não se confunda formação étnica com formação nacional, que é outra coisa decorrente desse fator e de outros ainda. E se nos perguntarem porque tomamos o índio, diremos que pela sua virgindade a nos ensinar, constantemente que, não tendo nós ainda pensado pelas nossas cabeças, podemos fazê-lo sem compromissos com as velhas civilizações. Responderemos ainda que, pela nenhuma contribuição cultural e civilizadora que ele nos trouxe à formação nacional, pode a nação dizer-se sua descendente, sem submissão histórica, até sem gratidão, o que a faz mais livre. E foi justamente esse senso de individualismo nacional que ensinou as clãs primitivas a se dizerem descendentes de bichos: para que pudessem fazer sua eclosão com uma força de liberdade selvagem.

A CIVILIZAÇÃO DIFERENTE

Depois, declarei:

“Nós  queremos criar uma nova mentalidade, não desenvolvida exclusivamente sob o influxo da cultura universal, mas respirando nesta, com raízes na terra. E quando digo “terra”, quero abranger “meio cósmico e étnico”.

Não sei ainda “como será” a cultura americana. Aos gênios do futuro compete responder-nos a angustiada pergunta. Não podendo alcançá-los, queremos comovidamente anunciá-los ao Mundo.”

NÃO SE TRATA DO INDIANISMO

Escrevi esta frase 17 vezes em cinco artigos. Mas escrevo ainda mais uma vez. Não se trata de indianismo.

O que queremos é um Brasil masculino, que tenha a iniciativa dos atos fecundantes. Pois há povos masculinos, que fecundam, e povos femininos, que são fecundados. Como há espíritos femininos, que se emprenham pelo ouvido. Queremos, pois, um Brasil brasileiro. Não faço isso por patriotismo, mas por humanidade. Pois vejo que a civilização ocidental europeia faliu. Já nada se espera dela. Temos (e quando falo temos quero abranger vários séculos futuros), temos que criar uma civilização em que talvez o gênero humano  seja mais feliz. Isso parece pilhéria, aos espíritos (como a maior parte dos intelectuais brasileiros), que esperam sempre o resultado do que se dá em outros países. Mas creio firmemente que não o é. Ponho uma grande fé na “raça cósmica” de que fala José de Vasconcelos. Ela poderá dizer a última palavra.

Voltemos à sabedoria da infância. Por que nascermos velhos? A Europa é uma velha caduca, nós somos um povo criança. Declaremos à velha que somos filho do índio como o índio era da anta. E nada temos a ver com gente estranha. O movimento da Anta é de ação. Ação verdamarela de independência. Sentir diretamente, dizer diretamente. Perder essa noção do ridículo, ministrada por estrangeiros e inimigos, essa noção que nos fez perder o brio nacional. Não mais dizermos que somos latinos. Isso é  política que nos prende eternamente à Europa. E onde já se viu caboclo e mulato latino? Acabemos com esse respeito supersticioso pelas coisas que vêm de fora. Sejamos brasileiros para sermos dignos da Humanidade.

Publicado originalmente n’O Jornal, Rio de Janeiro, 13 de março de 1927.

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