A Arte de Semear
Ideias é uma arte difícil. Não pelo que exige em qualidades de ação, mas
principalmente pelo que reclama em virtudes de resistência.
Não é somente
escrevendo e publicando livros, redigindo e estampando artigos nos jornais,
subindo à tribuna e proferindo discursos, nem lecionando ou simplesmente
conversando, que se consegue semear ideias capazes de germinar.
Tudo isso é
preciso, não há dúvida, mas tudo isso nada vale, se o semeador não possui
aquela indispensável energia interior com que a si mesmo vence em cada hora de
desânimo, diante da incompreensão, ou da indiferença, ou da injustiça.
Essa resistência,
em cada minuto de sua vida, é que constitui o húmus alimentador e vivificador
das ideias semeadas. Sim; essa resistência é que determina a continuidade, a
permanência, a fidelidade que são os fatores operantes nos processos da
germinação das ideias.
Porque o grande
drama dos portadores de ideias novas consiste justamente no contraste entre
estas e a realidade humana, que é o solo onde o semeador deita a sementeira.
Tudo conspira
contra aquele que traz algo novo. Entre os adversários que se mobilizam, tem
ele de contar com as ideias velhas, que ressuscitam pretendendo ser mais novas,
mais oportunas, mais conforme o tempo transcorrente.
Não encontrando no
Presente nada capaz de amesquinhar ou destruir o Pensamento que se antecipa aos
dias em que surge; os medíocres procuram nas sombras do Passado elementos com
que opor-se aos Renovadores, aos propositores de soluções novas. Com tais elementos,
proclamam que a ideia nova foi superada.
O verdadeiro
Missionário de ideias percebe claramente o truque desses falsificadores e não
se perturba na marcha que se propôs de um apostolado irredutível.
Para isso é preciso
um grande poder sobre si mesmo, pois todas as aparências trabalham contra ele.
Essa força interior provém de íntima certeza, de uma convicção. Mas para haver
convicção é mister que o Semeador não seja apenas o portador de ideias, mas
seja, principalmente, o portador de uma crença profunda.
Os que não
acreditam nas ideias que pregam não resistirão à onda das aparências
enganadoras, não se conservarão firmes e inexpugnáveis em face da conjuração e
dos expedientes dos medíocres. Deixar-se-ão influenciar por estes, entrando
primeiro na dúvida, depois no desânimo, finalmente no ceticismo. E perderão a
batalha.
Perderão, porque a
batalha já estava perdida antes de ser travada. O pretendido semeador era
indeciso, a sua mão tímida e trêmula, a sua palavra insegura e dubitativa.
Quando saiu a campo,
não se blindou contra as influências estranhas; de sorte que, à leitura do
primeiro livro de grande sucesso lançado pela mediocridade contemporânea, a sua
fé em si mesmo abalou-se. Ficou à mercê da imensa fauna dos oradores
oportunistas e dos artigos e notícias da imprensa quotidiana. Os falsos êxitos,
os retumbantes aplausos, que coroam os vitoriosos do momento em seus efêmeros
triunfos, impressionam o homem fraco, o apóstolo sem fibra, o tímido predicador
sem confiança naquilo que ele chama inicialmente “a verdade” e que mais tarde
chamará “a doutrina superada”.
No entanto, o
contraste principal, que cria a tragédia de todos os lutadores apostolizantes,
encontra-se exatamente naqueles motivos que atestam a autenticidade do “novo”
em face do “velho”.
A ideia nova
precisa de homens novos. Para isso, ela necessita, antes de tudo,
transformar-se em sentimento. O sentimento produz os atos, ou séries de atos,
em que se manifestam e se afirmam as personalidades novas.
Quando a ideia se
transforma em sentimento, estabelece-se no que foi inicialmente seu “objeto” e
depois se fez “sujeito” operante, a linha nítida da conduta. A manutenção dessa
linha depende, entretanto, da própria força do sentimento, na sucessividade das
emoções, cujo ritmo se exprime naquele constante fervor da paixão criadora.
A progressão
crescente parte do termo “ideia”, ascende ao termo “sentimento”, atinge o termo
“paixão”. A semente chega, então, ao ponto de desenvolvimento sem o qual não
germina.
E não germina
porque só a paixão da ideia, isto é, a continuidade das emoções sentimentais,
traz consigo a energia seminal fecundadora. O pregador crê no que prega; a sua
palavra transmite o gérmen, a centelha vital.
Quando o pregador
tornou-se autêntico semeador, operou em si mesmo a superação de todas as forças
negativas e esterilizadoras. Conhece-se quando tal acontece, não já pelas
palavras que o semeador profere, mas pelos atos que pratica.
Os atos
identificadores da autenticidade do apóstolo revelam, um por um, a
persistência. Mas, justamente porque o processo da transformação da ideia em
sentimento e do sentimento em paixão apostolar se opera, de pessoa a pessoa, em
ritmos variáveis, aquele que se fez propagador, difundidor de ideias novas
sofre a grande amargura cotidiana das decepções sem número.
São momentos
perigosos na vida do semeador. É o choque entre todas as forças do “velho”
contra a audácia do “novo”. O pioneiro do Futuro amarga a imensa dor de
verificar que, entre aqueles que marcham com ele, e até mesmo entre aqueles que
se dizem vanguardeiros na maravilhosa aventura, manifestam toda a espécie de
fraquezas, de incapacidade para enfrentar os momentos difíceis, de impotência
no sentido de viver o sonho magnífico posto na linha do horizonte desejado.
A semeadura, pouco
a pouco, no transcurso dos acontecimentos, tornou-se marcha. As mãos atiram a
semente à terra; as pernas prosseguem, para diante, sempre para diante.
Mas há os que se
cansam. Há os que param no meio do campo, a contemplar o terreno percorrido e,
além deste, para trás, muito para trás, o terreno percorrido por outros, por
outras gerações, segundo outro sentido de vida e de realidades. Nesse horizonte
pretérito, erguem-se os vultos dos que apontam para a frente e parecem dizer
aos caminhantes que não olhem para eles, pois cada geração tem o seu destino
próprio; mas há também os vultos dos que viveram segundo o Presente que lhes
pertenceu e não segundo o Porvir, que nos pertence, e estes, em vez de nos
mandar marchar para diante, convidam-nos a regressar ou a extasiar-se na
contemplação estática do que eles foram, do que eles fizeram.
E há também os que
se iludem com as falsas aparências de uma realidade que não é realidade;
capitulam em face dos êxitos ocasionais dos medíocres; entregam-se ao domínio
dos cartazes e das frases feitas, que constituem, em última análise, as páginas
dos doutrinadores de ocasião, dos mágicos de feiras, em torno de cujas palavras
se conglomera a clientela bestificada dos “best-sellers” e dos auditórios dos
comícios.
E há, ainda, os que
pretendem o absurdo que consiste em querer que a ideia nova viva efetivamente
uma vida atual, esquecendo-se de que nesse caso ela deixaria de ser nova. Esses
revoltam-se, porque o seu generoso pensamento, a sua nobre doutrina, o seu
elevado sentimento só encontra possibilidade de vida em poucos, em alguns, e
não na maioria dos próprios companheiros de ideal. Tornam-se céticos,
mordendo-lhes o coração o íntimo desejo de abandonar a luta. E muitos a
abandonam, dizendo: são muito poucos aqueles que realmente me compreendem.
Incorrem dessa
forma, no maior dos erros, que é desconsiderar o valor das ideias que outrora
foram novas e que, tendo-se transformado em fatos sociais, persistem, pela lei
da inércia, e persistirão longo tempo, utilizando-se de todos os expedientes do
“falso novo” para a manutenção do velho. Não raciocinam para concluir que
justamente por ser nova, a nova ideia terá que colocar o seu objetivo no
Futuro. Não percebem que toda ideia nova é uma batalha contra o Presente. Do
Pretérito, ou da Atualidade, ela toma unicamente os valores eternos, que
pertencem também ao Futuro. Mas os “valores eternos” não são os “valores
visíveis”, ou o cortejo das aparências e as estruturas de superfície.
No meio de todas as
confusões, de todos os fracos e desorientados, sofrendo a injustiça dos
adversários e a injustiça dos seus próprios colaboradores, o Semeador terá de
continuar. Impassivelmente. Serenamente. Irredutivelmente.
E deverá ter em
vista que o verdadeiro missionário de ideias não é aquele que apenas escreve
livros no conforto dos gabinetes, ou redige artigos de imprensa sobre os fatos
do dia, ou lavra pareceres, ou compõe ensaios, prefácios ou conferências,
mediante temas de ocasião, ou vai discursar na praça pública somente quando
chega o tempo das campanhas eleitorais ou das campanhas relacionadas com
acontecimentos ou problemas que ocorrem periodicamente. O verdadeiro
missionário de ideias não conhece a pausa das férias parlamentares, os
intervalos das propagandas à boca das urnas, a intercadência feliz dos repousos
reconfortantes. Mas, ao contrário, prega constantemente, em todos os dias da
sua vida; anda de cidade em cidade, sem pausa nem descanso; escreve para
jornais e escreve livros; procura dar concatenação lógica às ideias,
estruturando um corpo de doutrina; e – o que é mais importante – sacrifica-se
anos após anos, em continuidade efetiva, resistindo não apenas às injustiças
adversárias, que são explicáveis e plenamente justificáveis, por exprimirem a
natural reação das ideias velhas. Mas também às injustiças daqueles mesmos que
julgam segui-lo, ou que sabem, no íntimo, que não o seguem, fingindo apenas
segui-lo.
Essa resistência,
essa capacidade para compreender e perdoar, essa energia na manutenção dos propósitos,
esta linha imperturbável de marcha, tudo isso consiste a grande arte de semear
ideias.
A arte de semear
ideias é sem dúvida, uma arte difícil. Mas, por isso mesmo, é bela. Que a
juventude da nossa Pátria saiba praticá-la. E poderemos ter confiança no
Futuro.
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SALGADO, Plínio.
Reconstrução do Homem. 3ª edição. São Paulo: Voz do Oeste, 1983; 180 págs.
Transcrito integralmente da pág. 51 até 56.
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