terça-feira, 9 de junho de 2015

O Problema da Ordem (1935)

Capa da 2ª edição (1937) de "A Doutrina do Sigma".

Plínio Salgado

O problema da ordem não é um problema de polícia, mas um problema de regime. A desordem é um sintoma de enfermidade social. Quando um país entra em anarquia, quando se multiplicam os distúrbios, quando proliferam os descontentamentos, os brados de rebeldia e as atitudes de desespero, cumpre examinar o quadro social, o valor e a disposição das forças econômicas, numa palavra, as causas da arritmia dos movimentos sociais, das super-excitações nervosas das multidões.

Seria absurdo que, chamando-se um médico para examinar um doente que se debate no leito e berra, perturbando o sono da família e da vizinhança, viesse o médico e receitasse uma mordaça para abafar os gritos e uns metros de corda, para amarrar o enfermo.

Esse tratamento não resolve a situação. O que se quer é que o médico descubra a causa das dores e aplique medicamentos capazes de aliviar o doente. Muitas vezes, o caso é de operação cirúrgica.

Assim um país. Quando lavra o comunismo, o anarquismo, a desorientação socialista, cumpre verificar os motivos porque isso acontece, removendo-os. E não engendrar leis repressivas, que são contraproducentes porque agravam os males, levando ao desespero.

Já Leão XIII, em meados do século passado, referindo-se às providências repressivas que os governos adotam quando dão conta de sua própria fraqueza, lembra que elas são as mais indicadas como remédio à desordem, cujas causas são muito mais profundas. A suprema autoridade da Igreja Católica diz mesmo, textualmente, que "a repressão leva ao desespero; o desespero leva à audácia; a audácia leva aos crimes mais monstruosos".

Eis a razão porque negamos autoridade moral ao Estado Liberal Democrático e, principalmente, ao Estado Social-Democrático, como o que temos, desde a Constituição de 16 de Julho, para adotar leis de arrocho contra o sentido revolucionário que empolga as massas brasileiras.

A ordem pública é, apenas, um aspecto da ordem nacional. A ordem nacional é constituída:

a)    — da ordem espiritual e moral;

b)    — da ordem cultural;

c)    — da ordem sentimental;

d)    — da ordem econômico-financeira;

e)    — da ordem social;

f)     — da ordem política;

g)    — da ordem militar;

h)    — da ordem administrativa.

Num país onde todas essas "ordens" se encontram subvertidas, não é possível conseguir-se a ordem pública, ainda mesmo usando-se dos meios mais violentos. Antes, pelo contrário, os meios violentos precipitam a desordem.

A ORDEM ESPIRITUAL

Como se pode obter a "ordem espiritual"? Pela doutrinação, pela propaganda, pela educação constante, paciente, das massas populares.

O governo está providenciando nesse sentido? Não.

Perguntamos: no caos da vida brasileira, na confusão que assinala estes dolorosos dias da nossa história, onde estão os doutrinadores, os propagandistas, os educadores das massas? E podemos responder com segurança: estão no Integralismo. O go­verno mantém cursos populares de doutrina, em que se ensine o amor à Pátria, o respeito à Família, o culto a Deus, em que se combatam os vícios, o comodismo, o oportunismo, o indiferentismo de uma sociedade que apodrece a olhos vistos? Não.

Pois bem: o Integralismo mantém esses cursos em cada um de seus núcleos, arrancando a massa popular dos erros com que a envenenam aqueles que recebem dinheiro do capitalismo internacional para preparar o operário brasileiro à escravidão do soviét. Quer dizer que hoje, no Brasil, a única força coordenadora das consciências no sentido da "ordem espiritual e moral" é o Integralismo. Desafiamos quem nos aponte outra organização semelhante, que abranja toda a extensão territorial da Pátria e congregue maior número de brasileiros, pois somos hoje 400.000.

Essa ordem espiritual e moral nós a conseguimos pela criação de uma extraordinária unidade de pensamento e de sentimento, que se exprime pelo mesmo ritmo de atitudes, desde o Amazonas ao Rio Grande. Enquanto os governos estaduais dividem os brasileiros, nós os unimos numa prodigiosa comunhão, que realiza o milagre estupendo de uma única aspiração nacional. É isso o que se chama "ordem espiritual e moral", confraternização de "todos os que, acreditando num Deus, fazem dele o fundamento indestrutível de toda ordem social", conforme diz a Encíclica de Pio XI, cujo texto foi compreendido pelos Integralistas tanto católicos como luteranos, presbiterianos ou espiritistas, pois hoje formamos a frente única espiritual, arrebatada pela bandeira de Deus, da Pátria e da Família, disposta a todos os sacrifícios para salvar a Nação das garras do materialismo do século. Vivendo uma época semelhante à da invasão maometana contra o Ocidente, repetimos, como no tempo das cruzadas, o episódio maravilhoso da união e do bom combate em que se empenham todos os que se esforçam para salvar os valores legítimos da civilização cristã, aperfeiçoando-os ainda mais.

A essa campanha doutrinária e mobilização das forças morais da Pátria, juntamos a obra educacional que realizamos através de nossas organizações atléticas e esportivas de "camisas- verdes".

Por que mantemos essa organização? Já expliquei muito bem o sentido da nossa luta no artigo que intitulei "Técnica de Sorel e Técnica de Cristo". O nosso movimento nacionalista é muito diferente dos movimentos "fascista" e "hitlerista". Os que nos confundem com esses movimentos nunca leram a literatura integralista. Em relação a esse importante setor, nós o mantemos como "escola de disciplina". O "camisa-verde" aprende a ser modesto, diligente, respeitoso, adquire um exato conceito da Autoridade; aprende a amar a sua Pátria e a tudo sacrificar por ela, inclusive seus interesses e vaidades pessoais; aprende a sofrer, a calar, a trabalhar sem alarde; aprende a amar seus companheiros, que constituem hoje uma família de 400.000 irmãos. No dia em que todos os brasileiros forem "camisas-verdes", estará resolvida a primeira questão desse complexo problema da Ordem.

Se o governo abandona a mocidade, se ele nunca pensou em evitar que os ginasianos, os alunos das Escolas Superiores, das Escolas Militares, das Escolas Técnicas, a juventude das fábricas e dos campos, a própria infância das escolas primárias sejam envenenados por professores ou propagandistas de toda a espécie, que lhes inoculam os venenos do materialismo, do comunismo, do separatismo, do comodismo, do ceticismo, do oportunismo grosseiro, nada mais natural que o instinto de conservação da Nacionalidade, as vozes profundas do Brasil tivessem falado aos nossos ouvidos, de sorte que surgíssemos no país a suprir uma insuficiência do regime liberal-democrático, preservando a infância e a mocidade de males mais terríveis para uma Pátria do que a tuberculose e a morfeia.

Combate-se, ainda que deficientemente, mas combate-se a lepra, que deforma os indivíduos fisicamente; não se combate com energia o materialismo, que deforma moralmente os homens, deformando a própria alma de uma Nação! Por isso é que o Integralismo, como doutrina de ordem, objetivando, preliminarmente, a ordem "espiritual e moral", não é apenas o remédio para os doentes do confusionismo e da anarquia mental, mas é, acima de tudo, a obra de preservação dos filhos de uma geração já completamente corroída pela terrível enfermidade do século.

Quem quiser saber o que são as nossas organizações da juventude vá ver nos núcleos integralistas o milagre estupendo, ou assista ao filme que tem mostrado a todos os brasileiros o prodigioso advento de uma Pátria.

A ORDEM CULTURAL

Nada mais justo, quando pela falta de base filosófica e de humanidade se abandonam, sem defesa, os cérebros moços à corrupção de toda uma literatura de bordel, em que se mesclam os realismos mais torpes, as dissoluções estéticas mais deletérias e os socialismos mais charlatães, nada mais justo do que aparecer o Integralismo, como um fenômeno de saúde nacional, despertando energias novas e orientando-as no sentido de se atingir essa coisa fundamental como base de toda ordem nacional: a ordem cultural.

Pouco ou quase nada adianta proibir a leitura de livros corrosivos, quando não existe nenhuma orientação no sentido de despertar nos moços o gosto pelos estudos e dar-lhes a compreensão exata dos verdadeiros problemas nacionais. A índole do Estado Liberal-Democrático, ou do Estado Social-Democrático, que é o que temos, não permite, sem transgressão de seus princípios essenciais, apontar com mão forte e decidida o caminho que toda uma juventude deve seguir, se quisermos salvar o Brasil.

O Integralismo aparece, então, trabalhando intensamente nesse setor. Cria a sua Secretaria Nacional de Doutrina, que se desdobra em Secretarias Provinciais de Estudos, em Secretarias Municipais de Pesquisas, em departamentos que abrangem, não somente os panoramas de uma filosofia nova, totalitária, o campo vasto da Sociologia e da Pedagogia, da revisão da História, dos problemas modernos do Estado, da Economia e das Finanças, mas todo um trabalho que harmoniosamente se executa em 1.123 municípios, de estatística, de monografias, de ensaios, drenados através dos órgãos hierárquicos, para a nossa seção de "problemas do Estado", à cuja frente se acham os valores mais legítimos de uma geração.

Como poderemos objetivar a solução do problema da ordem pública sem esses pilares da ordem, entre os quais avulta o da ordem cultural? Como poderemos pensar em realizar a felicidade do povo brasileiro, se não tivermos, preliminarmente, uma unidade de cultura, uma uniformidade de método e um processo de suscitar homens públicos capazes de compreender as linhas gerais de uma supervisão do Estado e de executarem no seu setor os trabalhos que lhes forem confiados, obedecendo a um critério geral de filosofia, de sociologia, de direito, de pedagogia, de economia e de finanças, que se traduzem nos atos materiais de administração?

O Brasil não tem tido filósofos nem criadores de direito. O que temos tido são divulgadores, compiladores, comentadores, hermeneutas, causídicos e rábulas. Daí o nosso charlatanismo, o nosso empirismo, o nosso unilateralismo expresso no provincianismo político e no estudo em separado de cada problema nacional, que nunca se subordina ao quadro geral dos problemas nacionais.
Essa é a ordem cultural que o Integralismo está criando.

A ORDEM SENTIMENTAL

Que temos feito, até hoje, para criar um ritmo disciplinador do sentimento brasileiro? Em 1927 escrevi uma frase que serviu de cabeçalho a um jornal de Pernambuco, na qual dizia que o sentimentalismo brasileiro é a força mais decisiva em nossa economia social. Continuo a pensar do mesmo modo. Vejo o sentimento brasileiro, que nos revela traços de uma unidade tão profunda, trabalhando continuamente no sentido da desordem, pelos homens que fazem neste país a política dos Estados e que vêm para o cenário federal com a visão estreita dos regionalismos provincianos. O sentimento brasileiro, que é amplo, uniforme e dominador em todos os tratos do território nacional, como observei viajando todas as nossas províncias e a quase totalidade de nossas pequenas cidades interiores, tem sido violentado numa obra de desagregação sistemática que os governadores de Estado e suas oligarquias executam contra a Nação.

A luta hegemônica entre os três grandes Estados é o maior fator da desordem nacional. Admira como esses mesmos homens, que outra coisa não fazem do que socar a pólvora que explode de quatro em quatro anos subvertendo toda a ordem nacional, admira que esses homens que fazem a "política dos Estados", geradora das lutas fratricidas em que se derrama periodicamente o sangue da mocidade, açulando os ressentimentos regionais, sejam os signatários de um projeto de lei de segurança nacional! Pois a Nação só poderá estar realmente segura quando deixarem de a dirigir os regionalistas, os estadualistas, os incapazes de evitar as revoluções que esses mesmos criminosos fingem querer evitar.

A ordem sentimental está sendo criada pelo Integralismo. Um "camisa-verde" do Amazonas tem a mesma fisionomia interior, a mesma atitude afetiva e o mesmo instinto de solidariedade nacional que os seus irmãos do Rio Grande do Sul, de São Paulo ou Sergipe. Este amor à Pátria Total vibra da mesma maneira na Bahia, Alagoas, Pernambuco, Ceará, como na Paraíba, no Maranhão, no Rio Grande do Norte, no Pará. É olhar um Integralista de Mato Grosso e ver um Integralista de Santa Catarina, de Goiás, do Paraná, do Rio de Janeiro, do Espírito Santo. A alma integralista mineira não difere da alma integralista do irmão acreano, do irmão piauiense. Esta obra nós estamos realizando de uma maneira profunda, como jamais se fez! Esta solidariedade, este bater de coração é um dos esteios da ordem, esteio indispensável à segurança nacional. Que tem feito o Estado Liberal-Democrático nesse sentido? Nada, absolutamente nada; pelo contrário: tem desvirtuado o patriotismo brasileiro, tem acirrado antipatias entre regiões, tem feito funcionar um Congresso onde há bancadas de todos os Estados, menos a bancada do Brasil.

A ORDEM ECONÔMICO-FINANCEIRA

Como pode haver ordem econômico-financeira se não há ordem sentimental? Se cada Província se fecha egoisticamente a examinar seus próprios problemas, esquecida de que a sua própria felicidade depende do grande problema nacional? Como poderemos criar a força poderosa da União Nacional, com a qual nós iremos enfrentar o capitalismo agiotário, as explorações das bolsas, o jogo de negócios de eternos exploradores, se não argamassarmos este cimento que estruturará os blocos da resistência da Pátria? Como poderemos pôr mãos à obra violenta e corajosa da libertação do Brasil, da proclamação de sua soberania financeira, sem organizarmos para o Estado a retaguarda de uma ordem espiritual, de uma ordem cultural e de uma ordem sentimental?

Um país que vive em desordem econômico-financeira, usando as mesmas tisanas, os mesmos paliativos que o empirismo dos nossos técnicos, aprende na escola dos que ensinam errado para melhor nos sugarem; um país onde a voz dos banqueiros fala mais alto ou mais profundamente do que as vozes dos políticos; um país que deixa morrer à míngua as nossas fontes de produção, pela incapacidade de romper com as velhas arengas de Adam Smith e de falar grosso aos agiotas e zangões da City e as Wall Street —, este país não pode pretender ordem social.

Se a lavoura, as indústrias, o comércio, estão à mercê de uma orientação que, em vez de ser brasileira é inglesa, ame­ricana ou francesa e, o que é pior, judaica internacional, como podem essas forças, abafadas, asfixiadas, estranguladas, atender à grita, por sua vez justa, do proletariado?

Sem ordem econômico-financeira não há ordem social.

A ORDEM SOCIAL

O problema do socialismo não é unicamente o problema proletário, afirmou Durkheim, mestre de socialistas. E Durkheim, ele próprio unilateral, como todos os socialistas, levanta com essa frase a ponta de um véu que os integralistas descobrem de todo.

A ordem social enquadra-se no complexo quadro das outras "ordens", como estamos vendo. Subordina-se ao conceito ético do Estado, e esse conceito só pode provir da "ordem espiritual e moral". Entrosa-se com as questões estruturais do Estado, e estas estão intimamente ligadas à "ordem cultural". Filia-se à necessidade de força nacional, e esta depende da "ordem sentimental". Deriva, de uma maneira imediata, das possibilidades vitais de uma Nação, e estas decorrem da "ordem econômico-financeira".

Que adianta fechar sindicatos, fechar jornais extremistas, prender comunistas e anarquistas, trancar as portas de partidos e clubes? O Estado assim procedendo não faz mais do que repetir a história do marido enganado: retira o sofá da sala...

O Estado Integralista não será, no dia em que ele estiver vigorando, aquele Estado a que Engels alude, que está sempre a serviço de uma classe. O seu valor e significado ético colocaram-no acima das lutas sociais, haurindo nelas apenas a inspiração da justiça social.

Não é aqui o lugar para desenvolvermos todo um capítulo sobre um dos mais palpitantes problemas modernos. O que afirmamos é que comunismo não passa, no Brasil, de um sintoma de angústias, de injustiças, em última análise, de desequilíbrios. O Estado só conseguirá ordem social recompondo equilíbrios. Tudo o mais será inútil.

A ORDEM POLÍTICA

Como evitar as conspirações, as mazorcas, as sedições, os golpes de Estado, as revoluções? Com lei de repressão? Mas isso é pretender curar uma enfermidade grave com aspirina. A ordem política só será possível quando não houver mais partidos estaduais que disputem hegemonias; quando o Brasil não estiver divido em 150 partidos políticos cuja função única é fomentar distúrbios, brigar em seções livres, subornar jornais, fazer ataques pessoais, tolerar companheiros maus, fraudar eleições, intrigar, mexer, distrair a atenção do povo brasileiro de seus problemas para as charadazinhas desses campanários tão nocivos à saúde do país.

Como acabar com os partidos? Pela ditadura? Não! Só os povos selvagens, bárbaros ou sem dignidade toleram ditaduras, sejam civis ou militares, sejam positivas ou rotuladas de "espírito revolucionário".

Os partidos só podem se extinguir organizando-se a verdadeira democracia cristã, que é o Estado Corporativo. Não haverá descontentes nem perseguidos, porque todos os homens que pertencem agora aos partidos são brasileiros e pertencem a uma profissão. Eles poderão, pois, entrando para sua classe, ser elevados por ela, porque na classe as vontades são muito mais livres, pois estão a salvo de dependências humilhadoras.

A ordem política só será possível quando todas as forças brasileiras se harmonizarem com o objetivo único de construir a Grande Nação. Ora, como é possível termos essa ordem quan­do os autores da chamada Lei de Segurança Nacional, ao mesmo tempo que levam esse projeto à Câmara, já preparam a futura campanha de sucessão do atual presidente? Esses homens não estão vendo que as alianças secretas que já estão realizando entre alguns Estados para abater outros, constituem elas a fonte de todas as desgraças nacionais, de toda a desordem, de toda a barbaridade de um morticínio de nossos irmãos, de toda odiosidade entre províncias, que podem degenerar na desordem separatista?

A ORDEM MILITAR

Querem muitos exigir do Exército que ele se recolha à caserna. Eu desejaria que esses lessem as páginas que a respeito escrevi no meu livro "O cavaleiro de Itararé", publicado em 1932.

Considero hoje as Forças Armadas a última expressão de uma unidade nacional que nos chegou do regime liberal-democrático federativo, separatista, desagregador e desordeiro. Só a Marinha e o Exército se salvaram, pelo menos como sentimento de Pátria Total, da Unidade Nacional. É certo que muitos de nossos militares se imiscuíram em desordens civis, mas, ainda assim, isso foi, até certo ponto e sob certos aspectos, providencial, porque constituíram, na própria desordem, o liame da ordem nacional, a vigilância da alma da Pátria, evitando a degeneração dos movimentos em dissolução social ou de esfacelamento do Brasil.

Ora, na situação como a que nos encontramos, em que só existem partidos estadualistas (quem quer verificar que vá ao Tribunal Eleitoral e só encontrará registrado um partido de âmbito nacional: a "Ação Integralista Brasileira"), como poderemos prescindir daqueles que foram os únicos que se conservaram "brasileiros", no meio dos que, pelo menos na ação política, são apenas "mineiros", "paulistas", "gaúchos", "baianos", etc.?

Ao Estado Liberal-Democrático desordeiro, acirrador de ódios, de ódios entre irmãos, caudilhesco, oligarca, regionalista-separatista, falta autoridade moral para impedir que os únicos brasileiros que restam da "debacle", os únicos que nós, integralistas, encontramos, quando ingressamos na História do Brasil, os únicos que nós surpreendemos adorando nossa Bandeira Nacional, se interessem pela política de sua Pátria. O Exército, um dia, irá desempenhar o papel mais relevante da Nação, executando um plano gigantesco de restauração do nosso prestígio externo. As nossas escolas de "camisas-verdes" são as preparadoras de um espírito nacional capaz de compreender o Exército. A confraternização dos únicos brasileiros civis que chegaram na hora da dissolução final, com os únicos brasileiros que vieram de 40 anos de anarquia política, vai ser completa no dia em que deixarmos de ser pernambucanos, cearenses, amazonenses, cariocas, para sermos, acima de tudo: brasileiros! O Integralismo, fábrica de brasileiros, nega autoridade moral àqueles que, pretendendo dissolver a Nação, querem proibir as Forças Armadas de atuarem, não digo pelas armas, mas pela sua força moral, evitando que nos acabem de matar os banqueiros internacionais, os agentes do comunismo russo, os materialistas de todo jaez, fomentadores de discórdias, intrigantes, corvos de garras enterradas no corpo da nossa Pátria.

Se o país está em desordem política, não pode realizar a ordem militar, tão necessária, essa ordem que todos nós aspiramos, pois não desejamos para o Exército um papel semelhante àquele que desempenham os exércitos de certas republiquetas que, de tanto derrubarem e elevarem generais à ditadura, acabaram se esfacelando, ao ponto de, em Cuba, subir ao poder o cabo Machado, numa hora em que virtualmente o Exército já não existia. O papel que desejamos ao Exército é aquele glorioso papel do Exército francês ou do Exército japonês.

Queremos que ele seja uma força gloriosa. Que seja a nossa garantia. Que seja o nosso ídolo. Queremos que, à passagem de um militar, nós, civis, possamos descobrir-nos, vendo nele um asceta, um herói, um esteio da nossa liberdade, da nossa soberania, um baluarte da nossa grandeza, o irmão a quem confiamos tudo: nosso lar, nossa família, nossa bandeira, nossa carta geográfica, o nome da nossa Pátria!

O Exército só será, assim, o nosso ídolo, quando ele estiver livre dos paisanos que embarafustam pelos quartéis, a forjar conspiratas, cujos riscos quase sempre cabem aos militares, cujas consequências sofrem os militares, por serem mais simples, mais cândidos, mais sinceros.

A ordem militar, portanto, só será possível quando se estabelecerem todas as outras ordens no organismo nacional.

A ORDEM ADMINISTRATIVA

O aspecto mais formal, mais material da ordem administrativa indica-nos que ela não será possível sem todas as ordens precedentes. Ela decorre da "ordem espiritual e moral", sem a qual não há administradores honestos; ela deriva da "ordem cultural", sem o que não há administradores conscientes; ela se origina da "ordem sentimental", sem o que não haverá administradores que trabalhem com amor, que ponham um pouco do seu coração no serviço que lhes compete; ela depende da "ordem econômico-financeira", porque nada se poderá fazer num país que anda com a corda no pescoço, entregue à anarquia daquelas casas onde, não havendo pão, todos gritam e ninguém tem razão; ela é um prolongamento da "ordem social", porque nos países perturbados pelas agitações consequentes das lutas de toda a espécie, não é possível haver calma, segurança na obra administrativa; ela se subordina à "ordem política", porque não é possível haver administração capaz se os políticos a perturbarem com sua chusma de pistolões, de afilhados, de manobras, de perseguições a adversários; ela se entrosa com a "ordem mi­litar", porque se a administração é uma função do governo, como este é uma concretização do Estado, essa função não poderá ser exercida sem o prestígio da força, e a força de uma Nação está diretamente ligada à capacidade de ordem militar.

Sem essa "ordem administrativa" jamais existirá a ordem nacional. Sem esta não haverá ordem pública.

Eis porque nós, integralistas, achamos inócua a chamada Lei de Segurança Nacional. Ela própria é um sintoma de desordem. É uma confissão de anarquia. É um libelo contra o sistema liberal-democrático, contra a politicagem dos Estados. É o anúncio de que existem conspirações. É a prova de que a Ordem está exigindo um grande movimento nacional. É a maior propaganda do Integralismo. O médico está querendo amarrar e amordaçar o doente, para que ele não grite e não perturbe os vizinhos? Que deve fazer a família? Chamar outro médico. No caso brasileiro esse médico será a Liberal-Democracia de 1891, revogada pela Social-Democracia de 1934, que agora se confessa impotente? Não! Porque a doença já avançou muito e os "chazinhos" já não curam. É então o comunismo? Não, porque ele atenta contra Deus, contra a Pátria e contra a Família, que estão no coração dos brasileiros. É o Socialismo? Não, porque ele não passa de um comunismo mascarado. É a Ditadura Militar? Não, porque um povo civilizado não tolera ditaduras, nem civis nem militares. Então, que salvação é possível?

Brasileiros! Civis e militares, lavradores, industriais, comerciantes, operários, estudantes, camponeses, intelectuais! Nesta hora histórica em que nos desesperamos desejando a Ordem, em que tanto precisamos da Segurança Nacional, só há uma esperança, uma só salvação: — o Integralismo!


Originalmente, um Artigo publicado em “A Offensiva” (07/02/35, Ano II, n.° 39), quando se debatia na Câmara dos Deputados o projeto da Lei de Segurança Nacional; posteriormente, publicado como Capítulo II de “A Doutrina do Sigma” e nas antologias “Páginas de Ontem” e “O Pensamento Revolucionário de Plínio Salgado”. 

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Vozes na Tempestade (1931)


Plínio Salgado

A que misterioso ritmo obedece esse estranho rumor, a princípio vago e indistinto, já agora nítido e altissonante, que perpassa pela superfície da terra, dando a volta ao seu meridiano?

Que sentido profundo traz essa agitação geral dos povos, a tragédia surda dos espíritos, a angústia dos oprimidos e o sobressalto dos opressores?

As cidades cresceram para os céus. Os mares coalharam-se de naves de aço. O homem percorre a amplidão com asas de águia. A terra multiplicou as suas messes, as indústrias multiplicaram seus benefícios. Todos os confortos imagináveis se tornaram realidades banais. Todos os sonhos de beleza e de magnificência foram ultrapassados. E nunca o homem dominou mais os elementos, nunca imperou melhor sobre a natureza.

Rufam no espaço os motores; gritam as locomotivas; berram os automóveis; uivam os apitos das fábricas; estrondam as usinas; mugem os navios; sibilam polés; estridulam guindastes; cantam os rádios... É a sinfonia planetária...

O esplendor do homem

Todas as ambicionadas farturas a que a Antiguidade poderia ter aspirado centuplicaram-se de uma maneira assombrosa.

Os celeiros do velho Faraó, refertos para socorrer as populações da África e da Ásia, durante os sete anos de penúria, são ridículos em face dos "stocks" internacionais de trigo, de vinho, de café, de todas as mercadorias, capazes de abastecer duas vezes a Terra.

O ouro de todos os impérios antigos não se compara ao ouro que a Civilização carregou para as arcas dos Bancos, dos recessos da América Meridional, das entranhas do Alasca e dos Estados Unidos, do subsolo da Ásia e da África.

A força dos animais e dos escravos, que arrastava colunas monolíticas e impelia no mar os quinhentos remos das galeras romanas, é hoje uma minúscula energia de formigas, comparada à potência das locomotivas e dos transatlânticos, dos dínamos propulsores das usinas.

A rapidez de raio das quadrigas do corso, não passa de um lerdo movimento de caranguejos, em proporção à velocidade da canção do Broadway, que se escuta no mesmo instante, no orbe inteiro, ou da luz com que Marconi ilumina do seu iate, em Gênova, a cidade antípoda de Sidnei, na Austrália.

As máquinas produzem por milhares de homens. A Civilização esplende nas suas grandes Metrópoles. Nunca a humanidade foi tão rica, nunca o gênero humano conheceu maior fartura.

A própria terra, rejuvenescida pelos adubos químicos, revolvida pelos tratores ágeis, plantada com a nova e milagrosa técnica, decuplica o volume das suas safras, mãe carinhosa dos homens, transformada em escrava de sua indústria.

O boneco de carne

E, entretanto, nunca houve desespero maior, nunca o ser humano mergulhou em confusão tão grande, tão desnorteadora.

Nas grandes babilônias cresce a legião dos desocupados; os vagabundos disputam um pedaço de pão; há criaturas sem teto, que dormem ao relento, ou na promiscuidade dos albergues; e o próprio trabalho já não é um prazer, mas um triste manobrar de manivelas e de alavancas, onde toda a iniciativa do espírito desapareceu.

Outrora, o trabalho tinha qualquer cousa de fino, de sutil, feito de amor e de entusiasmo, de esperança e de alegria íntima, criadora; e, agora, o homem sente-se, cada vez mais, submetido a um ritmo mecânico, que o vai transformando, dia a dia, numa peça do grande maquinismo da Produção.

Não amando mais o trabalho (e só se ama aquilo onde se realiza a fusão do espírito com as necessidades da matéria); vendo a "arte" ser substituída pela "técnica"; a feição individual anulada pela feição estandardizada; a tendência das vocações contrariada pelas possibilidades das colocações, — o homem moderno vai se tornando um autômato, um boneco de carne e osso, que será possivelmente substituído por um outro boneco de aço e ferro, quando o barateamento do custo da produção e a racionalização do trabalho, levada aos extremos que a técnica sugere, determinar que assim seja.

O animal do “oitavo dia”

A máquina moderna, criação do homem, para produzir confortos ao homem, torna-se uma concorrente deste.
Vede um tear, uma linotipo, uma rotativa, um motor, um calculador mecânico. Que estranhos seres! Parece que pensam, que raciocinam, que respondem numa linguagem que não é de palavras, mas de ação.

A máquina é um ente que tem, sobre o homem, a vantagem de não fazer greves, de não ter coração para amar nem boca para falar. E em se tratando de mercadorias similares (e tão similares que a Economia Clássica os submete às mesmas leis da oferta e da procura), é sempre preferível a que importunar menos e produzir mais, melhor e mais barato.

Nestas condições, o monstro de aço conquistou, mais do que a igualdade, a superioridade social sobre o homem.

A máquina não tem pais nem gera filhos; não vibra de afetos; não alimenta aspirações; não cultiva preconceitos. É, portanto, muito mais conveniente ao capitalismo universal.

E é por isso que esse capitalismo quer arrancar do homem os últimos resíduos espirituais, para que a massa proletária se transforme também num sistema de maquinismo...

O monstro de aço! Quando ele trabalha, suas rodas dentadas, suas engrenagens, suas serras parecem rir da criatura de Deus. E os apitos das fábricas parecem um grito dominador dizendo ao homem, quando rompe a aurora: "Levanta-te, peça de máquina!”.

Esse grito domina o panorama das cidades tentaculares, onde o homem sofre, esmagado pela própria civilização que ele criou.

Humanidade mecânica

O instinto da máquina vai avassalando tudo.

As casas mesmo começam a mecanização do homem, na forma rudimentar do “cortiço”, para depois se fixarem em expressões mais técnicas das vilas proletárias e dos arranha-céus de apartamentos.

É olhar uma casa e ver todas. Submetidas à mesma planta, à mesma fisionomia, elas impõem a cada ser humano um ritmo idêntico de movimentos, anulando a personalidade, para que triunfe a coletividade. Pois é sobre a coletividade que a máquina domina mais soberanamente. E ela exige que se modelem coletividades de formas geométricas precisas e cadências uniformes.

Essas coletividades devem ser estereotipadas à fome. Devem cristalizar-se nos fornos de todas as necessidades, de todas as angústias, que irão obrigando cada tipo isolado a se acomoda ao grande ritmo dos tipos comuns, cuja finalidade é o próprio ritmo, cujo sentido é a mecanização total da existência.

A redução ao inanimado. A racionalização desracionalizante. O homem-tipo, como a máquina-tipo. O trabalho mercadoria, como o quilowatt-hora. O índice de calorias dos combustíveis. O trabalho como finalidade do trabalho. A morte total do espírito.

A besta do Apocalipse

Todo esse inferno contemporâneo é presidido pela soma do trabalho acumulado pelos latrocínios, na tradução metálica das barras de ouro e na versão social do papel moeda, concentrados nas mãos de poucos. É o capital.

Tudo gira em tomo desse ídolo muito mais terrível do que o Moloch de Cartago, que exigia menor número de vítimas para as suas entranhas de fogo.


Por que sofre tanto a humanidade?

É o Capital, que marcha para a sua feição mais simples; que ensaia a sua tirania na forma dos grandes trustes, dos monopólios, dos grupos financeiros, das organizações bancárias, e que se dirige para o capitalismo do Estado, numa velocidade cada vez maior e mais enervadora.

É a besta apocalíptica.

Que se assenhoreou do poder dos reis e dos impérios; que proclamou sua tirania sobre todas as nações, sobre todos os grupos sociais e sobre todos os homens.

É o espirito da mentira e da crueldade. O dragão que devora os povos.

Ele ergueu-se, na face da terra, para enfrentar e negar Deus, como negou pela vez primeira quando rolou para as trevas eternas; que se levantou para esmagar o Homem, arrastando-o a todas as abjeções, para finalmente  arrancar-lhe o coração e deixar-lhe, apenas, os movimentos mecânicos da máquina.

Condenados e oprimidos

Cresce, por todo o Universo, o estranho rumor.

É o clamor do Homem que sofre, nas colônias remotas da Ásia e da África; na estepe da Sibéria, nos Urais e no Cáucaso, tangido por algozes; nas entranhas do Ruhr, de Cardiff, negro de hulha; nas profundezas das minas de diamantes do Transvaal, das cavernas de ouro do Morro Velho, da Califórnia; nos sertões do Brasil, nas salitreiras do Chile, nas galés das Guianas, nos bairros proletários das grandes metrópoles resplandecentes como Babilônias multiplicadas, por toda a superfície do planeta, e nos porões dos transatlânticos e das naves de guerra, armadas para os morticínios...

É o gemido do Homem, que já não tem trabalho porque a máquina o expulsou das fábricas; que não tem pão, porque, na fartura imensa, já não há necessidade do esforço do pária, e as leis vigorantes determinam que se tome a mercadoria-trabalho quando se precise, e se deixe morrer o trabalhador, quando não se necessitar dele.

O útero metálico da máquina

O Homem, vencido pela máquina, pensa, então, em criar o regime político que agrade à máquina. Pensa em viver em razão da máquina.

De há muito que a Democracia renegou os governos éticos, concebendo o Poder como uma expressão do "Homem Cívico", portanto, do Homem mutilado, do Homem sem alma. De há muito que se desprezou a teocracia.

Mas o Homem hoje volta-se para uma forma imprevista de teocracia. Quer ser governado pelos Sumos Sacerdotes do Ateísmo. Aceita a grande razão da técnica e do capital. Aceita desaparecer como gota de água no oceano do coletivismo, onde toda a personalidade se destrói.

É a mais moderna expressão mística.

O misticismo que nega uma face da metafísica, para proclamar o valor da outra face.

E que subordina o Homem a uma divindade infernal, que não se funda no amor, mas na ausência do amor. E nega ao Homem o direito de se interessar pelas outras criaturas, pois só deve cogitar de si.

De si, não como personalidade irradiante, e sim como fração de um grande Todo.

O Homem renega o amor, para aceitar o egoísmo.

O amor impunha-lhe deveres; o egoísmo subordina-o à escravidão dos instintos.

A vida do instinto é o primeiro passo para a transformação do ser humano em máquina.

Essa transformação é dolorosa, porque o espírito reage.

O Homem inventou a máquina. A máquina, agora, quer fabricar homens. E se um dia saírem homens das usinas, também os úteros das mulheres gerarão homens-máquinas, sem coração, sem afeto, meros aparelhos de produção...

Fala alguém na tormenta

Infinita é a angústia do espírito. Por todo o planeta perpassa um misterioso rumor... Que estranhas vozes falam no rumor da procela?

E no rumor da procela há vozes, há algumas vozes que falam...

Só as escutam os que conservam a consciência da grandeza humana. Só as entendem os que trazem consigo a fortaleza do Espírito Perene e a permanência das secretas energias indestrutíveis...

(SALGADO, Plínio. O Soffrimento Universal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. Transcrito das páginas 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 e 24).


Obs.: Este Artigo foi reproduzido nas antologias “Madrugada do Espírito” e “O Pensamento Revolucionário de Plínio Salgado” sob o sugestivo título de “O Mundo que prepara a catástrofe”.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Equívocos de Dom Helder (1966)


Plínio Salgado
(Copyright para os “Associados”)

Estou lendo em “O Globo” uma entrevista de Dom Helder Câmara, respondendo a uma acusação de sr. Gilberto Freyre, que diz haver sido o atual arcebispo do Recife um fascista em 1945. Defendendo-se, o prelado declara: “Jamais neguei que, na mocidade, pertenci à Ação Integralista Brasileira. Entre 23 e 24 anos de idade, vi o mundo como ainda hoje parece vê-lo o professor Gilberto Freyre: irremediavelmente dividido entre capitalismo e comunismo. Um dia descobri que incomparavelmente mais importante do que a divisão entre Leste e Oeste, é a divisão entre Norte e Sul. Isto é: incomparavelmente mais importante do que a divisão entre comunismo e anticomunismo é a distância, cada vez maior, e mais dramática, entre países desenvolvidos e países subdesenvolvidos. Em face dos países subdesenvolvidos, nada se parece mais com o egoísmo dos EUA do que o egoísmo da URSS”.

Estas declarações demonstram que o arcebispo não chegou a conhecer nem a doutrina nem a ação prática do integralismo. Acusado de fascista, responde que, realmente, pertenceu à Ação Integralista Brasileira e, nessa resposta, confirma o errado conceito que o sr. Gilberto Freyre tem daquele movimento hoje considerado, pelos mais insuspeitos, a fonte do atual nacionalismo de que Dom Helder se fez apóstolo e dos sentimentos de brasilidade que têm sido através de todas as nossas crises, o alicerce de sustentação das nossas tradições democráticas, da soberania nacional e das tradições históricas da Pátria. Deveria o prelado dizer que nunca foi fascista, pois o integralismo não era e não é fascista, mas uma doutrina espiritualista, cristã, nacionalista sem jacobinismo, preocupado com a justiça social e reformas indispensáveis para atingi-la. Com essa resposta, Dom Helder se colocaria bem com a verdade histórica, colocar-se-ia numa posição de respeito a seus velhos companheiros que ainda sustentam os mesmos ideais e com uma juventude que em número de milhares de estudiosos igualmente os sustenta. Nenhum de seus antigos correligionários se sentiria ofendido, mas, pelo contrário, formariam uma eficiente retaguarda a prestigiar a obra atualmente exercida por aquele tão carinhosamente chamado padre Helder, nos anos de 1932 a 1937. E, sobretudo, não daria sua colaboração, ainda que indireta, às aleivosias levantadas pela ditadura totalitária que dominou o País, durante oito anos, e pelos agentes do capitalismo e do comunismo.

Como chefe e doutrinador do integralismo, sempre considerei o fascismo, o nazismo, o socialismo, e comunismo, o trabalhismo, o liberalismo, formas superadas de concepções, políticas e econômicas do século XIX. O nosso movimento, naquele tempo (como agora), visava a atualizar a mentalidade brasileira em relação às novas circunstâncias internacionais e a tomar como base as realidades do nosso País. Seu pensamento central sempre foi o da compreensão integral do universo e do Homem, segundo suas formas, substância e movimentos, proclamando a correlação fenomênica, da qual se conclui não existirem problemas isolados, mas interligados reclamando soluções globais atentas a reciprocas implicações e à repercussão de consequências no corpo social. O integralismo toma o Homem, consoante a definição da velha patrística e da legitima doutrina católica, como uma dualidade consubstancial exprimindo-se numa unidade substancia, isto é, corpo e alma, não separados, mas integrados na expressão da personalidade.

De tal pensamento deduz-se uma criteriologia administrativa, ou de Governo, e uma criteriologia representativa, a primeira estabelecendo planejamentos racionais libertos de unilateralismo dominante no fascismo e no nazismo (predominância do Estado sobre as pessoas), no socialismo e comunismo (opressão do Coletivo sobre o Indivíduo), no liberalismo (domínio do Individualismo sobre o Bem Comum); a segunda, propondo um sistema representativo em que cada um dos órgãos vivos e ativos do todo nacional tenha voz (que hoje não tem) nos debates e soluções dos problemas que a cada qual e a todos interessam.

O progresso científico e tecnológico do nosso tempo, a expansão dos imperialismos capitalista e comunista, os conflitos decorrentes da escravização cada vez maior do Homem aos detentores dos meios de produção e ao despotismo das automações que marginalizam multidões de seres humanos das fábricas e dos escritórios e levam à indigência as populações rurais, a tudo se acrescentando os horrores das guerras e a tragédia das revoluções internas, conduzem os pensadores mais atualizados a aceitar os princípios da doutrina integralista.

A frase inicial com que lancei o movimento a que pertenceu Dom Helder era esta: “Façamos todas as reformas, mas respeitemos a integridade do Homem”. Ora, respeitar essa integridade é, preliminarmente, manter a liberdade, o livre-arbítrio, faculdade e atributo inerente à racionalidade conferida por Deus ao Ser Humano; em seguida, proporcionar ao Homem, à Mulher, à Família, os meios materiais indispensáveis ao exercício de tão sagrado direito.

Como se vê, nem mestre Gilberto Freyre conhece a doutrina integralista, nem Dom Helder soube defender-se cabalmente da acusação que lhe foi feita.

Não sou dos que desaprovam a ação do atual arcebispo do Recife em prol dos pobres e das regiões subdesenvolvidas do País. Pelo contrário, julgo-a necessária como componente no grande esforço que hoje todos nós fazemos pelo reerguimento do Brasil. O prelado de agora é o mesmo padre de ontem, em companhia do qual andei pelos areais da orla marítima de Fortaleza, numa noite escura do ano de 1933. Ele me ia mostrar os necessitados, as famílias sem recursos, aquela gente que estava a precisar de nós para a sua redenção social. Nossos pés se enterravam na areia. Sobre nossas cabeças, num céu sem luar, cintilavam as estrelas. De vez em quando, parávamos e eu contemplava o perfil do jovem sacerdote, com a batina negrejando e agitada pelo vento; dava-me a impressão de que recuáramos aos meados do século XVI e que meu companheiro na aventura noturna era Anchieta.

Mais tarde, o padre transferiu-se para o Rio onde foi meu auxiliar direto e de minha absoluta confiança. Nesse período (creio que de 1934 a 1937), resolvemos juntos um caso tão grave, como sentimental. Foi a saída de Jeovah Mota do integralismo. Ele tinha sido eleito deputado federal pela Legião Cearense do Trabalho, anteriormente liderada por Severino Sombra, depois pelos três fundadores do integralismo no Ceará: Jeovah, Carvalhedo e padre Helder.

Para ficar provado quanto o integralismo (ao contrário do fascismo, do nazismo, do comunismo) era espiritualista e cristão, basta narrar o caso, que revelou em Jeovah Mota um dos homens de maior dignidade e nobre caráter entre os que tenho conhecido. Escreveu uma carta ao padre Helder na qual, dizia ter chegado a convicções inteiramente materialistas e, por isso, não podia mais continuar num movimento que punha acima de tudo a sua crença em Deus. Ao contrário do que fazem muitos políticos, Jeovah renunciava à cadeira de deputado e pedia ao padre Helder que se entendesse comigo para a sua substituição na chefia do Ceará. Naquela madrugada o padre Helder seguiu de avião para Fortaleza comunicou o fato aos companheiros e cumpriu a missão que eu lhe atribuíra. Se o integralismo fosse fascismo, Jeovah poderia continuar em suas fileiras; mas éramos espiritualistas e cristãos.

Outro equivoco de Dom Helder, na resposta a Gilberto Freyre: é quando diz que via o mundo errado, tendo mais tarde descoberto que mais importante do que a divisão entre Leste e Oeste (comunismo e capitalismo) é a divisão entre Norte e Sul (capitalismo e subdesenvolvimento). Para isso não precisava deixar de ser integralista, pois foi o integralismo que levantou, pela primeira vez, a bandeira contra o capitalismo de Wall-Street, o que é reconhecido por todos os atuais nacionalistas e pelos próprios esquerdistas. Basta lembrar o livro de Gustavo Barroso intitulado “Brasil, colônia de banqueiros”. Nunca, desde os primeiros dias de sua existência até agora, nas atividades de propaganda da terceira geração que estou preparando para nossa Pátria, deixamos de adotar essa linha.

De que se pode penitenciar Dom Helder pelo fato de ter sido integralista? Por trazer este o lema “Deus, Pátria e Família”? Por sustentar os direitos humanos, colocando o Homem como base de toda a construção social? Por incutir em nosso povo o respeito pelas nossas tradições históricas e o culto das virtudes cristãs? Por se insurgir contra os costumes de uma sociedade corrupta e contra aquilo que denominei “Espírito da Burguesia”, no título de um de meus livros? Por ter ensinado o povo a cantar o Hino Nacional? Pelo magistério que exerceu no sentido de que os filhos respeitassem os pais, os alunos os mestres, todos os cidadãos as leis, as autoridades públicas e os símbolos da Pátria? Por haver dado aos brasileiros a noção do seu próprio valor contra as teorias falsas da superioridade de raças? Ou simplesmente porque não pode assumir o governo do Brasil?

Havia, na Ação Integralista Brasileira, uma corrente, com o pensamento puro do movimento, conhecedora da sua verdadeira doutrina, da filosofia em que se embasava, e duas outras divergentes, que muito trabalho me deram: uma direitista e outra esquerdista. Os da primeira talvez pudessem assemelhar-se aos partidos totalitários; os da segunda propendiam para os exageros socialistas, tendo mesmo alguns desertado para o comunismo.

Tenho a impressão de que Dom Helder deixou-se sugestionar pela propaganda das calúnias, deturpações e desfigurações de que foi vitima o integralismo no tempo da ditadura e acabou se convencendo de que a corrente direitista, qualificada de fascista era a principal.

É um fenômeno psicológico hoje conhecido com o nome de “complexo de culpa”, pelo qual um indivíduo se convence de que praticou uma ação jamais praticada.

Continue Dom Helder na luta por nobres idealismos, evitando apenas o perigo de ser utilizado pelos agentes da anti-nação, como foram os mencheviques pelos bolcheviques na Rússia. Ninguém, em consciência, pode ser contra seus elevados sentimentos. Mas esteja tranquilo quanto ao fato de ter sido integralista: isso até o honra e fortalece na batalha que encetou. E pode ficar certo de que o movimento que o empolgou na sua mocidade não mudou uma linha de sua doutrina e hoje inflama, dinamiza e propele uma nova geração, que soube fazer revisão histórica, que analisou o integralismo sob todos seus aspectos (aparência e essência) no sentido de sustentar uma bandeira que caiu das mãos de alguns, mas foi reerguida pelas mãos de muitos.
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Publicamos o magnífico esclarecimento de Plínio Salgado graças à generosa colaboração do Companheiro Cleiton Oliveira - Autor do excelente Artigo “Hélder Câmara em Perspectiva”, cuja leitura recomendamos vivamente -, que o digitou na íntegra, e a quem agradecemos e enviamos o nosso vibrante Anauê!
Reprodução fotográfica do original pode ser visualizada em “Plínio Salgado critica publicamente Dom Hélder Câmara”
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sábado, 4 de abril de 2015

O CONCEITO CRISTÃO DE DEMOCRACIA NA OBRA DE PLÍNIO SALGADO (1995)



Euro Brandão*.

O anseio em formular e obter uma verdadeira democracia perpassa toda a vida de Plínio Salgado, seja em suas mais de sessenta obras publicadas, seja em toda a pregação que se estendeu por todo o solo da Pátria.

 É hoje frequente ouvir-se a observação de que a democracia, apesar de seus defeitos, é a melhor forma de governo. Há nisso uma grande parcela de verdade, e se dizemos parcela, é porque há democracia e democracia. Há contradições democráticas, como bem conhecemos. Até a pouco, as denominadas “democracias populares” não eram mais que férreas ditaduras do socialismo real. Há democracias que se restringem ao uso do voto universal, mas nada produzem em favor do cidadão. Muitas vezes a democracia é substituída pelo democratismo, que é uma aparência enganosa de valorização da sociedade, mas, no fundo, é uma manipulação engendrada por grupos interesseiros e beneficiários.

A vivência de cada dia se põe diante de nossos olhos, vivendo que estamos num regime dito democrático, uma interminável série de motivos de descrédito e de frustração.

Ressalta desde logo a desconexão da atuação governamental, a anteposição de grupos contraditórios dentro da mesma estrutura publica, a confusão das ideias e das diretrizes adotadas nos vários órgãos de governo, ou mesmo entre os poderes, criando-se a instabilidade e o desajuste social.

Os casos de corrupção se sucedem e, ainda que se possa admitir que seriam aqui e ali inevitáveis, é inaceitável sua quase institucionalização nos mais variados extratos de manuseio da coisa publica.

Outro aspecto ameaçador é o risco permanente de se recair numa ditadura. A História apresenta vários casos de acesso ao poder pelo voto popular, sem a existência de um substractum garantidor da índole nacional.

No Brasil tivemos recentemente esse caso estarrecedor de um presidente da republica vir a sofrer impedimento, acobertado embora pela enorme acolhida que tivera dos seus eleitores.

Cabe a pergunta: Onde está o erro? Onde fica a valorização da vida nacional? E o atendimento as necessidades essenciais das pessoas e das famílias? Onde está isso equacionado nessa conceituação democrática meramente eleitoreira?

Nos tempos de hoje a palavra democracia está assim totalmente desvirtuada, o mesmo acontecendo com a palavra amor, com a palavra liberdade, com a expressão realizar-se na vida. Por liberdade, essa valiosa e imprescindível faculdade humana, entende-se muitas vezes por liberalidade, fazer-se o que bem se entenda, sem observar os princípios éticos ou valorativos da pessoa humana.

E amor? Já não é a doação em beneficio do amado, o querer bem mesmo com sacrifício, mas o exercício do egoísmo e do prazer.

Jovens que manifestam desejo de alcançar plena realização em suas vidas, não se perguntam a razão de sua existência, mas olham apenas a posse de bens e a conquista de fama e poder.

Plínio Salgado, com seu gênio, suas meditações e estudos, com sua experiência e acuidade política, percebeu que era preciso propor uma democracia que correspondesse aos verdadeiros anseios humanos, uma democracia que servisse ao homem, de dignificá-lo, em vez de minimiza-lo, de engana-lo.

Era preciso começar pela pergunta: o que é o Homem?

Em sua obra O Conceito Cristão de Democracia, condensando o que proclamou em tantas outras oportunidades, Plínio apresenta o tema de forma lapidar.

O primeiro ponto fundamental é este questionamento básico: o homem é pura matéria, escravizado às leis determinísticas da natureza, sem perspectiva de vida transcendente? Ou admite-se que tenha alma imortal e tenha recebido potencialidades espirituais, como o livre-arbítrio, a dignidade de filho de Deus, a capacidade para o exercício das virtudes?

O materialismo (ou seja, a negação de Deus) e o agnosticismo (correspondendo à indiferença perante o problema da existência ou não de Deus) constituem opções aceitas consciente ou inconscientemente, em oposição à concepção espiritualista da vida e do mundo.

Afastada a ideia de Deus, o Homem se preocupou no século XIX, e em grande parte do nosso século, com a crença do que a Ciência, a grande conquista humana, resolveria todos os problemas da humanidade. Esse mito científico, cujo perigo alguns pensadores já haviam pressentido, encontra em Plínio Salgado um critico esclarecido.

Negada a existência de Deus e a imortalidade da alma, resta para o homem seu destino biológico. Subordinado às leis da matéria, destrói-se a noção de livre-arbítrio e, por conseguinte, o senso de responsabilidade. Fica valendo apenas o usufruto de todos os bens possíveis.

Instala-se uma grande contradição no mundo materialista. Pretensos reformadores da sociedade usam suas ideias e ideologias que, em última análise, são frutos de livre escolha, logo valores do espírito,  para pretenderem impor estruturas e soluções materialistas, logicamente desprovidas de espiritualidade!

Bem assevera Plínio Salgado: “Antes, entre a virtude e o pecado, o homem podia escolher livremente, e a isso chamavam escravidão; agora, o homem deve conformar-se com a fatalidade das condições inerentes à sua estrutura física e aos desígnios da espécie, e a isso chamam liberdade”.

Não é de se admirar, portanto, que, junto com o atual procedimento que se conhece como democracia, em todos os países onde ela é assim praticada, se instaure paralelamente o economicismo, o pansexualismo, a indisciplina, a injustiça social e a queda dos valores morais na sociedade.

Essa decadência progressiva dos valores humanos vai se processando sutilmente, não oferecendo luta aberta ao sentimento religioso, mas criando uma rede de dificuldades a que ele se desenvolva, propondo um conformismo perante a mecânica avassaladora do determinismo materialista. A pregação da transigência, do pluralismo e do modernismo, mal formulados, conduzem as mentes para o desbotamento continuado dos valores do Espírito.

Tivemos recentemente e a queda do muro de Berlim, o desmoronamento do império do materialismo declarado, e a euforia de que teremos uma era de democracia salvadora. Porém, Plínio Salgado, muito ante, já havia alertado: “Considero o materialismo nietzschiano e o marxista menos perigosos do que o agnosticismo, pois o verdadeiro materialista não é o que nega, mas o que não afirma nem nega. Aquele que nega persegue-nos, odeia-nos e mata nosso corpo; mas aquele que não nega nem afirma oferece-nos a paz e mata nossa alma”.

A organização harmônica da sociedade não dispensa a existência de um clima de elevação da alma que forneça padrões para o funcionamento adequado da estrutura social. Por isso insistiu tanto Plínio Salgado no estabelecimento de princípios que pudessem dar geração a programas de desenvolvimento e aperfeiçoamento social.

A verdadeira democracia, essa que possa ter realmente soluções para os problemas do homem e da sociedade, só pode ser decorrente de uma concepção de vida e da propugnação pela dignidade do Homem. “Qualquer sistema que seja provindo da vontade da multidão inconstante, da massa e não do povo, será joguete fácil nas mãos de quem quer explore seus instintos e impressões...” (Pio XII, citado por Plínio Salgado).

No mundo de hoje, diante da ocorrência do fenômeno da secularização, alastrou-se um processo, a ser revertido, que procura rejeitar sistematicamente o sentimento religioso na organização social, qualquer que seja a confiança de fé, notadamente a cristã, fundamento de nossa nacionalidade. A primeira consequência é que as normas éticas passam a ser meros dispositivos eventuais, estabelecidas pela moda, sejam legais, contratuais ou meramente formais. Perde-se toda a força da convicção e da motivação de natureza superior. Ora, a verdadeira moral só tem sentido se for muito mais que uma convenção ou uma ideologia, tem que ser algo vinculado substancialmente à natureza transcendente do Homem, ao sentido de sua vida que lhe deu o Criador.

Pela aceitação do materialismo prático (que pode ser, também, ter religião, mas não cumprir o que dizem professar), cabem todas as atitudes que levam às ambições e à prevalência dos instintos. No entanto, - o que vemos? -, muitos professores em suas cátedras, jornalistas em seus órgãos de comunicação, próceres políticos em seus pronunciamentos se envergonharem de testemunhar sua fé em Deus e, mais do que isso, de dar consequência efetiva, na atuação publica, de sua crença no destino eterno. E se policiam para não incorrerem no que consideram um erro: “onde já se viu misturar Deus com Política?” Seria, segundo eles, politicamente incorreto.

O resultado é a ocorrência acentuada das mazelas sociais, já que se subtrai o fundamento básico da própria existência humana. Constrói-se uma democracia para um outro ser humano, não esse que Deus criou, e a quem deus tantas potencialidades e um destino transcendente.

Como, entretanto, o sentimento do eterno é inato no Homem, diante dessas imposições da mentalidade reinante, só restam duas saídas: ou considerar a religião como algo de exclusivo foro íntimo que não deve ser levada em conta no plano político, ou, para enganar a consciência, adotar um agnosticismo vago, eivado de superstição, fantasia e misticismo inconsequente.

Isto para não falar dos que usam a religião em proveito próprio nas vésperas das eleições.

Não se aceitando a verdade provinda da Revelação Cristã, aplicando-a a realidade social, é mister adotar outro critério de certo ou errado. A democracia materialista aceita a regra da maioria. O maior número de votos tem prevalência sobre a verdade, ou melhor, passa a ser a verdade. Se a maioria votar que a soma dos quadrados dos catetos não é o quadrado da hipotenusa, isso passa a ser o correto. Assim por maioria se aprovam leis e procedimentos contrários à dignidade humana, à moral pública, e até contra a vida.

Os métodos democráticos devem ser um meio para o serviço do ser humano. Se, pelo contrario, a democracia for considerada com um fim, “em nada é diferente do conceito do Estado Totalitário, pois não vejo”, diz Plínio, “nenhuma diferença nessas duas atitudes: a de considerar o Estado tendo finalidade em si mesmo, ou considerar a democracia como fim em si própria”.

O primeiro passo essencial para uma verdadeira democracia é, portanto, estabelecer-se a que Homem essa democracia vai servir. O Homem (e, por conseguinte a Mulher, pois me refiro à Espécie Humana) é criado por Deus, à sua imagem e semelhança. Foi redimido pelo próprio Deus, por meio de Cristo, segunda pessoa da Santíssima Trindade, numa demonstração infinita de amor. É dotado de livra arbítrio e tem deveres inalienáveis estabelecidos pelo próprio Deus, donde decorrem direitos que lhe asseguram uma dignidade própria e indeclinável. Seus direitos e deveres estão acima dos ditames da ONU, ou qualquer estatuto jurídico, mas decorrem, como ensina Plínio Salgado, do próprio decálogo, ou seja, dos Mandamentos da lei de Deus. Ali está o respeito à vida, à propriedade, ao elevado relacionamento, à valorização do semelhante, à dignidade das pessoas, à preservação da Fé. Esses deveres e direitos não dependem de votações, das maiorias ou da aprovação de dignitários de nações.

Como a formação humana requer, necessariamente, um ambiente propício para desabrochar sua personalidade em clima de aconchego, ternura e compreensão, onde recebe os fundamentos de sua educação para a vida, a Família passa a ser um grupo social inerente à própria natureza humana e, portanto, anterior a qualquer prescrição legal ou política. Assim, toda a estrutura social, que não der atenção especial à Família, atenta gravemente contra a própria finalidade da estruturação da sociedade humana.

Em decorrência dessa condição, de dignidade própria, e de apoio familiar, é que se devem estabelecer os divulgados, porém nem sempre atendidos, direitos ao trabalho, à habitação, à educação, à alimentação, à justiça etc.

Acrescente-se que o ser humano é também um ser gregário, isto é, que vive em sociedade: organiza-se naturalmente em grupos que lhe dão suporte e motivação vivencial. Há então grupos naturais, como o grupo de pessoas que exercem a mesma profissão, de pessoas que pugnam pela mesma ideia política, e assim por diante. A valorização desses grupos é igualmente anterior a qualquer princípio governamental.

Por falar em governamental, é preciso determo-nos no que vem a ser Governo, bem como o que vem a ser Estado. Plínio sempre insistiu em bem caracterizar esses dois conceitos diferentes e tantas vezes misturados.

Obtida historicamente a consciência de formação de uma Nação, quando um povo se sente diferenciado em relação a outros e unido por propósitos e sentimentos semelhantes entre si, surge um novo Estado, isto é, a consciência do objetivo comum, e sua defesa, dentro de um quadro de admissão da mesma concepção do homem, do mundo, da sociedade. Ressaltam as peculiaridades do que conjuntamente se aceitam, como que no estabelecimento de uma síntese doutrinaria. Sem isso a Nação não se identifica como tal.

Já o Governo é uma consequência do Estado, que lhe é anterior. O Governo existe para dar presença física e coordenação às atividades compatíveis com as características do Estado. Exceção feita às monarquias hereditárias, cabe aí a escolha orgânica, pelos cidadãos, dos dirigentes que darão personificação à autoridade do Estado.

Fica, portanto, plenamente justificado que o exercício da democracia, no sentido de escolha dos dirigentes pelos cidadãos, é processo dependente e posterior ao planeamento de premissas básicas, estabelecidas de forma a corresponder à natureza humana e às peculiaridades da Nação e do Estado. Nenhuma democracia pode ser considerada legitima se pretender atentar contra essas premissas, ainda que lastreada em milhões de votos de apoio.

Mas – pergunta-se – como pode ter havido eventualmente milhões de votos contra a própria consciência nacional? Podem os votos contrariar a índole de uma nação?

Povo é o conjunto das pessoas conscientes de suas responsabilidades, agindo de acordo com suas convicções, comungando do sentimento nacional e expressando livremente seus anseios e esperanças.

Por outro lado, massa é a multidão momentaneamente conduzida a uma situação emocional, joguete fácil, como disse Pio XII, nas mãos de quem quer que explore seus instintos e impressões.

Várias vezes insiste Plínio nessas duas realidades. E isso porque é preciso haver mecanismos adequados para que, na democracia, se consulte o povo e não a massa.

Certamente não é povo a imensa multidão que se manifesta eleitoralmente por se ter empanturrado com um churrasco ou ter sido conquistada pela “gentileza” de uma condução para comparecer às urnas. Não resta duvida de que não é povo, o conjunto de desorientados votantes que, sem juízo formado, e diante de uma situação psicologicamente constrangedora, aceitam candidatos sobre os quais não possuem nenhuma informação confiável. Não é igualmente parte do povo, mas peça da massa, aquele que dá apoio político em troca de um interesse mesquinho ou de uma sugestão coletiva.

Esse é o grande problema, a que pouco se têm dedicado os propositores de sistemas políticos, e que, no entanto, foi a grande preocupação do grande pensador e político Plínio Salgado. Enveredou corretamente pelo insano trabalho de criar uma nova mentalidade de elevação espiritual, de responsabilidade social, de amor à Pátria, de renovação ética, de mística nacional. Propôs um corpo de doutrina, em que, valorizando o homem integral, tirava as consequências para a família, o trabalho, a propriedade, o município, a nação, o relacionamento internacional. Com isso, ficam fixadas as fontes geradoras de programas que se poderiam aplicar em cada circunstancia.

Plínio, conhecendo a psicologia do povo, serviu-se, no tempo da Ação Integralista Brasileira, de métodos de aparência externa, para motivação e convencimento popular. Essa aparência exterior, que se revelou eficaz no erguimento entusiasmado de milhões de brasileiros, era, porém, usada, de forma semelhante, por países europeus que eram ou se tornaram totalitários e guerreiros – postulando, portanto, doutrinas inteiramente divergentes do ensinamento de Plínio Salgado -, o que levou grave prejuízo ao trabalho realizado. A isso, se conjugou a implacável perseguição política da ocasião e, principalmente, a deformação das ideias propostas, por meio de uma desinformação conduzida.

Mais tarde, na retomada do imenso empenho em favor do Brasil e em outra configuração política da Nação, Plínio propôs a criação da Câmara Orgânica, um órgão técnico de assessoramento às outras casas do Congresso, com iniciativa de propor projetos de Lei. Esta Câmara seria composta por representantes diretos das categorias econômicas e culturais da nação, aperfeiçoando assim a mais sadia representatividade dos grupos naturais nos destinos do Brasil. Seria uma eleição indireta, de forma a evitar o voto inconsciente, pois as escolhas seriam feitas dentro de grupos que conheciam a atuação das pessoas mais categorizadas para atuarem plano legislativo. A rigor, essas organizações culturais e econômicas já existem, mas estão marginalizadas no processo legislativo, ou, quando endinheiradas, se transformam em grupos de pressão, sem o contrapeso de uma visão integrada dos problemas nacionais.

Toda essa cosmovisão, de Deus, do Homem, da Democracia, da legitima representatividade, ainda não encontrou a oportunidade propicia para novamente empolgar a nação.

Louvo os poderes Executivo e Legislativo de São Bento do Sapucaí pela iniciativa desta comemoração, lembrando um dos brasileiros mais ilustres, e filho desta terra abençoada. Com este evento de hoje, se está aqui levando a efeito um passo importante na educação de democracia e de brasilidade. Daqui poderá ressurgir, um dia, a grande marcha do futuro.

Diz Plínio Salgado em O Ritmo da Historia: “A manutenção de todas essas expressões de liberdade humana exige virtudes dos cidadãos. Essas virtudes são as que se contrapõe às leis do instinto, que é injusto e cruel. Cumpre, pois, como único meio de realizar-se o regime democrático, uma larga e profunda obra de educação para a Democracia”.

Deus, porém, dirige os destinos dos povos e, se essa for sua soberana vontade, saberá prover condições para que os brasileiros, que sonham com a Grande Pátria, há tenham um dia luminosa e feliz.

(Este trabalho, por razões de saúde de seu Autor, foi lido por Gumercindo Rocha Dorea, no início das Comemorações do Centenário de Plínio Salgado, em 21 de Janeiro de 1995, no Espaço Cultural “Plínio Salgado”, em São Bento do Sapucaí  - SP).


Publicado originalmente nos “Anais do Centenário e da  Segunda Semana Plínio Salgado”. São Paulo/São Bento do Sapucaí: Edições GRD/Espaço Cultural Plínio Salgado, 1996; transcrito integralmente da página 7 até a 17.


*   ∑. Euro Brandão (1924 – 2000). Foi engenheiro, professor, Magnífico Reitor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Ministro da Educação.