Esclarecimento: A
publicação do Artigo abaixo só foi possível graças a generosa colaboração do
Prof. Paulo Fernando, conhecido Líder Pró-Vida, profundo pesquisador da
História do Brasil, possuidor da maior Pliniana existente, que nos permitiu o
acesso a sua Hemeroteca; e, atualmente, é Deputado Federal pelo Distrito
Federal. Aos que desejarem conhecer mais o trabalho do Prof. Paulo Fernando
indicamos: https://www.instagram.com/paulofernandodf/
O
Jacaré e o Tapuio (15/01/1937)
Plínio
Salgado
Raul
Bopp, nosso atual cônsul em Kobbe, é um dos mais impenitentes andarilhos que
jamais conheci outro. Encontrei-me, certa vez, com ele, num
"boulevard" de Paris. Que surpresa! E nossas primeiras perguntas
foram, naturalmente, indagando um do outro: "De onde veio?"
Eu
respondi-lhe que vinha do Egito. Ele respondeu-me que vinha de Vladivostock,
pelo transiberiano. E, como fazia já três anos que não nos encontráramos,
levámos uma semana a contar um ao outro o que tínhamos feito, o que viramos.
Depois
de me narrar as maravilhas da Mongólia e os encantos do paraíso soviético, onde
a sua curiosidade quase lhe ia custando a vida, deu-nos saudade do Brasil, e eu
pedi ao homem que viajara todo o nosso país, vivendo no meio de bugres, andando
em todos os veículos, que me contasse histórias, como ele sabe contar, tão pitorescas.
Falou-me,
então, das coisas da Amazônia, das pajelanças, dos igapós, das cobras e dos
botos. Todos os dias, à noitinha, estávamos juntos. E foi numa dessas ocasiões
que Bopp me contou um fato ocorrido perto da ilha Caviana, onde ele fora
admirar o fenômeno das "pororocas".
Regressava
meu amigo daquela excursão, numa canoa conduzida pelas remadas fortes de um tapuio
taciturno.
O
passageiro só sabia que o Caronte amazônico estava fora de casa havia quase um mês.
A noite caiu tenebrosa. Depois de viajarem multas horas, o tapuio, rompendo o
silêncio de pedra, sugeriu-lhe a ideia de pernoitarem numa cabana, distante
dali cerca de uma légua. A ideia foi aceita por Bopp, que se achava fatigado e
com fome. A choupana era exatamente a casa do pai do barqueiro, que ali
habitava com sua família.
Algum
tempo depois, a canoa embicara na direção de uma pequena enseada a orla de um
barranco. A treva era espessa. Lá em cima, porém, parecia luzir um fogo. Um vulto
humano, que movia um tição rubro, gritou lá do alto:
-
Ei.....ô!: Ei...ô! Quem é?
- É
Jaquim, nhô pai: respondeu laconicamente o barqueiro, com voz descansada, vagarosa,
com o timbre das mornas populações ribeirinhas.
O vulto
perguntou: - Cadê o Zéca?
Com
a maior naturalidade do mundo, o tapuio Joaquim respondeu, amolengado, indiferente:
Jacaré
comeu...
O
Bopp compreendeu num relance a tragédia horrível. Viu mentalmente o quadro
dantesco: o corpo ensanguentado do Zéca, as aguas tintas de vermelho, as fauces
do Jacaré escorrendo. Imaginou o choque, o susto, a mágoa profunda que iria abalar
o coração do velho pai, que vira sair os dois filhos nessa canoa, em que o
Joaquim voltava, agora, com um estranho...
Mas
o velho, lá em cima, sacudindo o tição com que se alumiava, respondeu com uma
lerda compaixão, numa voz resignada, como se se tratasse do caso mais banal do
mundo:
- Coi...tado!
Já
em terra, Bopp observou que pai e filho trocaram algumas palavras sobre factos triviais,
sem mais se referirem ao assumpto da morte do Zéca.
A
luz da fogueira acesa na cabana, esperava a mãe dos rapazes. Essa, nem chegou a
perguntar. A ausência do Zéca explicava tudo. Não voltou, é porque morreu
afogado, ou algum Jacaré o cortou pelo meio, ou a febre o cozinhou de uma vez, ou
uma cobra o mandou para o outro mundo. Para que perguntar? Se estava vivo, apareceria.
Se estava morto, que fazer? Havia coisas mais importantes: um pedaço de peixe
para os recém-vindos, um naco de tartaruga com farinha crua.
O
semblante dos tapuios não acusava nada. Nem susto, nem revolta, nem mágoa. Aquelas
fisionomias copiavam a monotonia inexpressiva das águas vastas, da paisagem
plana, das árvores hirtas, dos mormaços equatoriais.
O fatalismo
geológico e climatérico, o peso da amplidão infinita, esse sentido trágico de
conformismo da terra criara aquelas psicologias singulares, sem vibração,
integrando-as no cosmos formidável, onde o homem era apenas um acidente.
Que
era o homem diante da pororóca? Diante da fatalidade dessa imensa massa de água
rolante? Acaso as árvores se revoltavam? Acaso essa terra negra, que se
esbeiçava em desbarrancamentos abafados, se revolveu algum dia, ou pelas forças
telúricas do seu seio, ou pela ação civilizadora do homem?
- Cadê
o Zéca?
- Jacaré
comeu.
- Coitado:
Que interessava
o Zéca, no panorama das vastidões amazônicas?
**
Há
povos que, desanimados diante da torrente dos fatos, abatidos em face de longas
forças opressoras, desiludidos por tudo e por todos, vão se conformando nos
traços dessa psicologia de depressão absoluta e de fatalismo irremovível.
Os
fatos mais graves não provocam as manifestações da vitalidade coletiva, a vibração
dos nervos, a deflagração dos sentimentos impulsionadores da vontade.
Foi,
assim, na Rússia. Tem sido assim em todos os países em vésperas de ruína. É
assim que as nações morrem...
- Os
tribunais estão sendo desrespeitados!
- Coitados!
- Os
responsáveis intelectuais pelas tentativas de destruição da Pátria estão em
liberdade!
- Coitados!
- Fogem
das prisões perigosos agitadores!
- Coitados!
- Aqueles
que constituem a barreira contra a invasão bolchevista estão sendo vítimas de
perseguições; que será da Pátria, se forem destruídas as suas resistências?
- Coitados!
- A
agitação política pode trazer graves consequências e abrir as portas à invasão soviética...
- Coitados:
- O
Jacaré comeu o Zéca!
- Coitado!
Há
mais no que cuidar. Há os interesses de cada um. Um pedaço de tartaruga com
farinha crua, ou um emprego, um cargo, uma posição, um favor... Há mais no que
cuidar! Há os candidatos da sucessão presidencial. Há as formalidades jurídicas.
Há a hermenêutica. Há a interpretação dos textos. Há os interesses em não se magoar
os governadores. Há política, há partidos, há conchavos. Pedaços de
tartaruga...
Fatalismo
oriental dos mujiques; fatalismo tropical dos tapuios.
A Imensa
vastidão da Rússia, da Sibéria infinita. A amplitude da carta geográfica do
Brasil...
A abstração
de todos os perigos. A Indiferença marmórea. A tranquilidade trágica. A apatia.
A abulia. Pobre Zéca, teu sangue foi espadanado pelas fauces do Jacaré: Pobres
militares mortos em defesa da Pátria, vosso sangue corres nas fauces do monstro
vermelho!
E
nós, os que estamos despertos, os que estamos, face a face, dos tapuios, dessas
esfinges, desses que leem os jornais como a dizer aos seus botões: “que tenho eu
com isto?" compreendemos o drama da nossa Pátria. E é por isso que
gritamos, a plenos pulmões, e erguemos o braço com toda a energia, declarando
guerra ao fatalismo:
Pátria!
Pátria! Desperta!
Publicado
originalmente n’A OFFENSIVA, em 15
de Janeiro de 1937.
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