terça-feira, 30 de maio de 2023

O Jacaré e o Tapuio (15/01/1937)

Esclarecimento: A publicação do Artigo abaixo só foi possível graças a generosa colaboração do Prof. Paulo Fernando, conhecido Líder Pró-Vida, profundo pesquisador da História do Brasil, possuidor da maior Pliniana existente, que nos permitiu o acesso a sua Hemeroteca; e, atualmente, é Deputado Federal pelo Distrito Federal. Aos que desejarem conhecer mais o trabalho do Prof. Paulo Fernando indicamos: https://www.instagram.com/paulofernandodf/

O Jacaré e o Tapuio (15/01/1937)

Plínio Salgado

Raul Bopp, nosso atual cônsul em Kobbe, é um dos mais impenitentes andarilhos que jamais conheci outro. Encontrei-me, certa vez, com ele, num "boulevard" de Paris. Que surpresa! E nossas primeiras perguntas foram, naturalmente, indagando um do outro: "De onde veio?"

Eu respondi-lhe que vinha do Egito. Ele respondeu-me que vinha de Vladivostock, pelo transiberiano. E, como fazia já três anos que não nos encontráramos, levámos uma semana a contar um ao outro o que tínhamos feito, o que viramos.

Depois de me narrar as maravilhas da Mongólia e os encantos do paraíso soviético, onde a sua curiosidade quase lhe ia custando a vida, deu-nos saudade do Brasil, e eu pedi ao homem que viajara todo o nosso país, vivendo no meio de bugres, andando em todos os veículos, que me contasse histórias, como ele sabe contar, tão pitorescas.

Falou-me, então, das coisas da Amazônia, das pajelanças, dos igapós, das cobras e dos botos. Todos os dias, à noitinha, estávamos juntos. E foi numa dessas ocasiões que Bopp me contou um fato ocorrido perto da ilha Caviana, onde ele fora admirar o fenômeno das "pororocas".

Regressava meu amigo daquela excursão, numa canoa conduzida pelas remadas fortes de um tapuio taciturno.

O passageiro só sabia que o Caronte amazônico estava fora de casa havia quase um mês. A noite caiu tenebrosa. Depois de viajarem multas horas, o tapuio, rompendo o silêncio de pedra, sugeriu-lhe a ideia de pernoitarem numa cabana, distante dali cerca de uma légua. A ideia foi aceita por Bopp, que se achava fatigado e com fome. A choupana era exatamente a casa do pai do barqueiro, que ali habitava com sua família.

Algum tempo depois, a canoa embicara na direção de uma pequena enseada a orla de um barranco. A treva era espessa. Lá em cima, porém, parecia luzir um fogo. Um vulto humano, que movia um tição rubro, gritou lá do alto:

- Ei.....ô!: Ei...ô! Quem é?

- É Jaquim, nhô pai: respondeu laconicamente o barqueiro, com voz descansada, vagarosa, com o timbre das mornas populações ribeirinhas.

O vulto perguntou: - Cadê o Zéca?

Com a maior naturalidade do mundo, o tapuio Joaquim respondeu, amolengado, indiferente:

Jacaré comeu...

O Bopp compreendeu num relance a tragédia horrível. Viu mentalmente o quadro dantesco: o corpo ensanguentado do Zéca, as aguas tintas de vermelho, as fauces do Jacaré escorrendo. Imaginou o choque, o susto, a mágoa profunda que iria abalar o coração do velho pai, que vira sair os dois filhos nessa canoa, em que o Joaquim voltava, agora, com um estranho...

Mas o velho, lá em cima, sacudindo o tição com que se alumiava, respondeu com uma lerda compaixão, numa voz resignada, como se se tratasse do caso mais banal do mundo:

- Coi...tado!

Já em terra, Bopp observou que pai e filho trocaram algumas palavras sobre factos triviais, sem mais se referirem ao assumpto da morte do Zéca.

A luz da fogueira acesa na cabana, esperava a mãe dos rapazes. Essa, nem chegou a perguntar. A ausência do Zéca explicava tudo. Não voltou, é porque morreu afogado, ou algum Jacaré o cortou pelo meio, ou a febre o cozinhou de uma vez, ou uma cobra o mandou para o outro mundo. Para que perguntar? Se estava vivo, apareceria. Se estava morto, que fazer? Havia coisas mais importantes: um pedaço de peixe para os recém-vindos, um naco de tartaruga com farinha crua.

O semblante dos tapuios não acusava nada. Nem susto, nem revolta, nem mágoa. Aquelas fisionomias copiavam a monotonia inexpressiva das águas vastas, da paisagem plana, das árvores hirtas, dos mormaços equatoriais.

O fatalismo geológico e climatérico, o peso da amplidão infinita, esse sentido trágico de conformismo da terra criara aquelas psicologias singulares, sem vibração, integrando-as no cosmos formidável, onde o homem era apenas um acidente.

Que era o homem diante da pororóca? Diante da fatalidade dessa imensa massa de água rolante? Acaso as árvores se revoltavam? Acaso essa terra negra, que se esbeiçava em desbarrancamentos abafados, se revolveu algum dia, ou pelas forças telúricas do seu seio, ou pela ação civilizadora do homem?

- Cadê o Zéca?

- Jacaré comeu.

- Coitado:

Que interessava o Zéca, no panorama das vastidões amazônicas?

**

Há povos que, desanimados diante da torrente dos fatos, abatidos em face de longas forças opressoras, desiludidos por tudo e por todos, vão se conformando nos traços dessa psicologia de depressão absoluta e de fatalismo irremovível.

Os fatos mais graves não provocam as manifestações da vitalidade coletiva, a vibração dos nervos, a deflagração dos sentimentos impulsionadores da vontade.

Foi, assim, na Rússia. Tem sido assim em todos os países em vésperas de ruína. É assim que as nações morrem...

- Os tribunais estão sendo desrespeitados!

- Coitados!

- Os responsáveis intelectuais pelas tentativas de destruição da Pátria estão em liberdade!

- Coitados!

- Fogem das prisões perigosos agitadores!

- Coitados!

- Aqueles que constituem a barreira contra a invasão bolchevista estão sendo vítimas de perseguições; que será da Pátria, se forem destruídas as suas resistências?

- Coitados!

- A agitação política pode trazer graves consequências e abrir as portas à invasão soviética...

- Coitados:

- O Jacaré comeu o Zéca!

- Coitado!

Há mais no que cuidar. Há os interesses de cada um. Um pedaço de tartaruga com farinha crua, ou um emprego, um cargo, uma posição, um favor... Há mais no que cuidar! Há os candidatos da sucessão presidencial. Há as formalidades jurídicas. Há a hermenêutica. Há a interpretação dos textos. Há os interesses em não se magoar os governadores. Há política, há partidos, há conchavos. Pedaços de tartaruga...

Fatalismo oriental dos mujiques; fatalismo tropical dos tapuios.

A Imensa vastidão da Rússia, da Sibéria infinita. A amplitude da carta geográfica do Brasil...

A abstração de todos os perigos. A Indiferença marmórea. A tranquilidade trágica. A apatia. A abulia. Pobre Zéca, teu sangue foi espadanado pelas fauces do Jacaré: Pobres militares mortos em defesa da Pátria, vosso sangue corres nas fauces do monstro vermelho!

E nós, os que estamos despertos, os que estamos, face a face, dos tapuios, dessas esfinges, desses que leem os jornais como a dizer aos seus botões: “que tenho eu com isto?" compreendemos o drama da nossa Pátria. E é por isso que gritamos, a plenos pulmões, e erguemos o braço com toda a energia, declarando guerra ao fatalismo:

Pátria! Pátria! Desperta!

 

Publicado originalmente n’A OFFENSIVA, em 15 de Janeiro de 1937.


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