terça-feira, 3 de outubro de 2023

CINZAS... (12/02/1937)

Esclarecimento: A publicação do Artigo abaixo só foi possível graças à generosa colaboração do Prof. Paulo Fernando, conhecido Líder Pró-Vida, profundo pesquisador da História do Brasil, possuidor da maior Pliniana existente, que nos permitiu o acesso a sua Hemeroteca; e, atualmente, é Deputado Federal pelo Distrito Federal. Aos que desejarem conhecer mais o trabalho do Prof. Paulo Fernando indicamos: https://www.instagram.com/paulofernandodf/

CINZAS... (12/02/1937)

Plínio Salgado

O Carnaval interrompeu a nervosa agitação política. Por entre, os éteres perfumados e as serpentinas multicores, o Povo Brasileiro procurou esquecer, durante o tríduo báquico, as suas preocupações, os seus palpites, os mexericos de todos os dias e os boatos de todas as horas. Mergulhado no letargo do prazer, por entre visões de pierrôs e de arlequins, de colombinas e de dominós, de baianas reboleantes, e chineses nas pontas dos pés, este grande Povo tratou, principalmente, de suffocar as suas inquietações, de abafar as suas angustias torturantes. Esquecer! Maravilhosa coisa esquecer! Sentir, após o pesadelo das realidades de todo um ano, o oásis do sonho, a ilha das ilusões, onde florescem multidões de chocalhos, guizalhantes, refulgindo as lantejoulas das fantasias aos clarões coloridos das lâmpadas e nos relâmpagos dos fogos de bengala... Esquecer! Nas azas douradas dos jazz, dos tangos, dos maxixes, dos sambas em requebros, em saltos, em acrobacias gigantes, esquecer os tremendos problemas quotidianos, as aflições que constituem o pão nosso de cada dia, dos amargos tempos.. Esquecer as manchetes da imprensa, as entrevistas dos políticos, os discursos dos próceres, as notícias das idas e vindas dos homens que discutem os destinos nacionais; e, no halo exaltado da alegria coletiva, embalar os ouvidos, os sentidos, o coração e a alma com o ritmo do tabuleiro da baiana e do "ligue-ligue-lé".

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O clamor dos instintos, como uma fuga à consciência. O coro das sensações e das impressões nos espasmos da orgia envolvendo, adormecendo, imobilizando o pensamento. Tríduo das ausências absolutas. Saturnal do Não-Ser. Espelhos côncavos e convexos para as contemplações do Espírito. Prismas das possibilidades delirantes. Liberdade de todas as personalidades escondidas, disfarçadas, sepultadas sob o peso das conveniências. Ensaios das geometrias desconhecidas. Revelação dos irrevelados. Objetivação de todos os subjetivos numerosos, complexos, rebelados, como formas últimas na antevéspera da Criação ou uma eclosão de antevéspera do Nirvana...

E, nestes três dias da loucura, como um fio tênue, quase imponderável, mas luminoso como uma teia aos reflexos lunares, uma esperança de certeza de alguma definição, quando as máscaras se abaterem, quando cessarem os ruídos das lupercais e o último pierrô despertar estremunhado sob um montão de serpentinas.

Sim... Talvez depois do Carnaval as situações se esclareçam. Para onde vae o Brasil? Para onde o levam os homens que se arrogam o direito de dirigi-lo? Que será deste povo? Que serão dos problemas nacionais? Até quando se cruzarão, pelos quadrantes da Pátria, os boatos de todos os feitios? Sim, talvez depois do Carnaval as coisas se iluminem de nova claridade. Talvez os políticos estivessem à espera da entrada roxa da Quaresma, para falarem definitivamente à Nação.

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Oh! Não se brinca assim com uma Nacionalidade: Não se exaspera assim uma Pátria angustiada, em estado de guerra, aterrorizada, a cada instante, por novas e mais graves ameaças.

Que estão fazendo os políticos? Que estão discutindo? Que estão concertando as escondidas? Por que viajam tanto? Por que marcam tão repetidos encontros? Por que não prestam contas ao Povo sobre os passos que estão dando, a clamar que defendem o regime do Povo, para o Povo, pelo Povo? Para onde nos querem levar? Para um acordo vergonhoso, para um candidato único à sucessão presidencial, sacrificando os princípios da dignidade, massacrando as ideias antagônicas, esmagando a honra dos partidos, desfibrando o caráter nacional, ensinando a lei do mínimo esforço, dando demonstração universal de que o Brasil ainda não é capaz de resolver seus problemas no terreno democrático da luta das ideias? Ou pretenderão levar-nos para uma batalha eleitoral baseada em coligações de Estados, como preparação de uma nova revolução armada, de uma guerra civil que pode arrastar o Brasil à secessão e à ruína?

Para onde pretendem levar nossa Pátria? Para uma política submetida aos caprichos ingleses, ou para uma política submetida ao arbítrio norte-americano?

Que pretendem fazer das instituições patrícias? Conservá-las atadas ao poste da imutabilidade, para que morram sob o punhal moscovita, ou transforma-las num sentido esquerdista, para termos uma situação Azanha ou uma situação Leon Blum?

Para onde vamos? Por que estão silenciosos os políticos?

No meio do delírio carnavalesco, o Povo espera alguma revelação para quarta-feira, para quinta- feira, qualquer palavra esclarecedora, qualquer gesto positivo, corajoso, digno.

E assim passa o Carnaval...

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Eis-nos no fim da semana e já depois da quarta- feira de cinzas.

Enquanto Momo reinou, houve máscaras, mas houve alegria. Agora, porém, continuam as máscaras, e elas não têm o esgar hílare, o riso aberto arlequinal, e sim a tristeza reconcentrada da hipocrisia, da traição e do crime.

Sobre eles caem as cinzas dos desmoronamentos morais. O panorama político é um nevoeiro mais denso. Chuvisca, por tudo e por todos, uma poeirinha fina, cor de chumbo, que parece fluídica e leve, mas é pesada como a morte.

Os partidos... os homens... os jornais... as notícias... as viagens... as entrevistas... os banquetes... os encontros... as "démarches"... as declarações... os conchavos... as conspirações... os comentários... as intrigas... as calúnias... as covardias... os interesses... as alianças... cisalha... misterioso outono a desfolhar da veIha árvore ressequida da Nacionalidade, as folhas das últimas esperanças e das definitivas desilusões...

Carbonização de nomes, de candidaturas... Papéis queimados, esfazendo-se ao vento, em detritos negros... Trituração de dignidades... pulverização de honras políticas no almofariz dos interesses e das ameaças... Areia fina, voejar de argueiros, cisco de quintais, vasculhos errantes, garoa de lava, névoas, cerração, fumaça, meias-sombras...

E nesta escuridão, caminhamos. E nesta quaresma, entramos por uma longa, exasperante, tediosa, crepuscular quarta-feira de cinzas... Quarta-feira de cinzas em que mal lobrigamos os vultos dos homens que se movem no ar trêmulo de incertezas e de perfídias, de traições recíprocas e conivências tenebrosas na traição à Pátria...

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E é neste instante que nós, camisas-verdes, tomando um pouco dessa poeira, dessa cinza, que se espalha pelo ar, que tudo esfuminha, tudo entenebrece, traçamos com o polegar e o indicador uma cruz na testa de todos os partidos políticos, repetindo as palavras litúrgicas que os sacerdotes pronunciam junto aos altares;

-Lembra-te, política, que és pó e em pó te hás de tornar.

Publicado originalmente n’A OFFENSIVA, em 12 de Fevereiro de 1937.

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