Plínio
Salgado
No ano passado, esta página trouxe
uma prece de Natal, oração da Pátria Criança ao Deus Criança.
Este ano, em meio às tormentas da
hora que passa, escrevo, não uma oração, mas uma carta, na qual não fala o
agitador, mas o homem de pensamento, que prevê o triunfo inevitável de uma
geração, cujo surto suscitou à custa dos mais tremendos sacrifícios.
Sinto hoje, mais do que nunca, a
responsabilidade da obra iniciada com a melhor das intenções, obra que corre
sempre o perigo de ser desvirtuada de seu recôndito sentido, pelos que, no
ímpeto, no elã revolucionário, se afastarem da linha realista e firme da concepção
política do Integralismo.
E não há dia melhor para que eu
escreva uma carta, não propriamente às massas integralistas, porém às elites
integralistas, do que este dia. Escrevo na tarde de 25 de dezembro, ainda sob a
impressão das festas de Natal. É a minha epístola de Natal. Ela procura se
inspirar na lição eterna que vive e palpita na História milenar dessa Vida
Divina, desabrochada como uma estranha flor no estábulo de Belém, à luz
misteriosa da estrela que guiou os pastores da Judeia e os remotos príncipes
caldeus.
Na madrugada de ontem, meditando
sobre “isto” que tenho feito, senti-me
apreensivo. Lembrei-me de Leonardo da Vinci diante do sorriso enigmático da
Gioconda, e o seu terror. A Gioconda era
bela, era incompreensível, indefinível, porém não era humana.
Examinei também a minha criação, na
hora mais dramática da minha Pátria. E inquietei-me. Não temo os inimigos, nem
as adversidades, porém temo os próprios integralistas. Eles, na exaltação
revolucionária, poderão perder aquilo que mais procuramos, aquilo que é
fundamento da nossa política: a consciência de si mesmos. E, perdendo a
consciência de si mesmos, perderão o conceito da autoridade, como eu a quero,
e a concepção do Chefe, como é
necessária a uma Nação Cristã.
Neste dia do Natal, volto-me para o
Cristo, cuja lição de integralismo resplandece nas páginas de sua Vida,
pedindo-lhe, de todo o coração, que não nos deixe afastar do conceito exato da
personalidade, da concepção humana da
existência, do equilíbrio no lineamento
do Estado, da Sociedade, da Família e do Homem.
Todo o erro dos séculos que nos
antecederam foi o de uma deturpação da personalidade humana. Uns, quiseram fazê-la tão livre, como
Rousseau, que a tornaram escrava dos instintos.
Alguns, pretenderam fazê-la tão material e mecânica, segundo Karl Marx,
que a tornaram escrava da coletividade e, em seguida, escrava de alguns
dirigentes da massa coletiva. Outros, tornaram-na tão desencantada das belas e
amáveis coisas da vida, que a defumaram, como Anatole, na salmoura da ironia.
Muitos, interpretando-a segundo os profundos “spleens”, biliosas amarguras e
surdas revoltas, engendraram, como Byron, a gloriosa, desdenhosa figura de
Childe Harold, os rancores de Leopardi e o “De Profundis” de Oscar Wilde. Outros,
ainda, pretenderam, em contraposição à pulverização marxista, às medidas
liberais de Rousseau, ao gosto de fel da existência, conforme Schopenhauer,
numa suprema revolta contra a mediocridade, engendrar a máxima exaltação da
personalidade: é o caso das fantasias delirantes de Frederico Nietszche com seu
Super-Homem.
Estes erros da concepção do Homem
refletiram-se, como era fatal, na concepção da Família, da Sociedade, e do
Estado. E produziram seus maléfícos efeitos, arrastando o mundo às desastrosas
consequências dos dias atormentados que vivemos.
Aquilo mesmo que aparece, aos olhos
de uma humanidade atônita, como reação aos cataclismos morais contemporâneos,
traz, muitas vezes, no fundo, a essência de uma das numerosas expressões do
erro que solapou os fundamentos cristãos da sociedade. É o caso da perigosa
tendência pagã do hitlerismo, fenômeno que deve impressionar, fundamente, a
consciência espiritual dos povos. A guerra às religiões, em ”estado latente”,
como observa Tristão de Athayde, prestes a passar ao “estado patente” como
acentua aquele escritor católico é uma consequência natural do misticismo que ali se criou, sem base religiosa,
isto é, misturando duas manifestações humanas diferentes, no âmbito restrito do
Estado. É a própria concepção do Estado Totalitário, no seu
máximo exagero, no estilo de Cesar: Chefe Militar, Chefe Civil e Pontífice.
É o erro de Luiz XIV, que se transporta à apoteose napoleônica, resplandece na filosofia anti-cristã de Nietszche, haure energias em
Frederico II e Bismarck, funde-se no espírito
da massa, na fornalha da Grande Guerra, e traduz-se na mística racista,
no paganismo que, em pleno século XX arranca das cinzas do passado para
atualizá-lo, o drama de Juliano, o apóstata. Já não é a volta de Júpiter Olímpico, dos deuses meridionais; é,
porém, a volta de Odin e dos deuses que,
desde as músicas clamantes do “Ouro do Reno”, Wagner vê no alto da
montanha.
Chegará a Alemanha a essas loucuras?
Não o sabemos. Apenas verificamos as consequências de um misticismo
transportado do campo religioso, onde
sempre deveria estar e de onde nunca deveria sair, para o campo das atividades políticas; a concepção do Chefe, como um homem diferente
dos outros, um semi-deus, a encarnação
de Odin, e a concepção dos seus adeptos, como seres inumanos,
super-religiosos, porém que, sem um fundamento cristão sincero, ultrapassaram a
linha hipócrita do velho puritanismo atingindo o outro extremo, onde a explosão
de todos os recalques acaba se
manifestando como negação da própria virtude.
Nesta
hora tormentosa para o mundo, e neste momento de tantas angústias para o
meu Brasil, sinto a minha responsabilidade grave e procuro falar menos como um
agitador, que tive necessidade de ser para despertar minha Pátria do que como
um construtor, um homem de Estado, um embasador da Nova Nacionalidade.
Volto-me para a única “fonte de água
viva”, para a “luz do mundo”, para Aquele que vivendo como um Deus a vida que
só um Deus pode viver, ensinou aos homens a viver a vida de homens e deu-lhes o
senso profundo da harmonia de que nos temos afastado tanto porque de há muito perdemos todo o conceito
exato, linear, perfeito da personalidade humana.
Perdendo o sentido humano da
existência, temos perdido, consequentemente, o sentido da nossa finalidade. Temos
misturado tudo, temos deturpado tudo, temos estabelecido tal confusão de
valores, de deveres, de tarefas próprias a cada um, de modelos de vida, que nos
arriscamos todos os dias a opor aos erros presentes o remédio consubstanciado
em novos erros.
Nesse estado de espírito em que o
mundo se encontra, é na lição de Cristo que poderemos encontrar a verdadeira
linha do Estado, da Sociedade, da Família e do Homem, segundo suas finalidades
próprias, seus limites próprios, sua
própria essência.
O Integralismo não quer construir o
Estado Totalitário, pois quer construir o Estado Integral, o Estado Harmonioso,
o Estado Imutável, na sua essência e mudável na marcha revolucionária que lhe
impõe os deveres do Espírito e lhe faculta o livre-arbítrio do Espírito, que
nele se reflete.
Distinguimos o campo religioso da
área política. Concebemos a autoridade, não segundo o furor místico,
exacerbado, doentio dos adeptos em torno do Chefe, porém, como um princípio de
manutenção das estruturas orgânicas da sociedade. É no Divino Mestre que
encontramos a lição admirável: a César o que é de César e a Deus o que é de
Deus; sim, porque Cesar é um homem, ainda que os romanos possam acreditar na
sua divindade. Daí tiramos o conceito do Estado, os limites de sua área de ação, a natureza de
sua missão. Porque a missão do Estado
não é a de Cristo, cujo reino “não é deste mundo”, porque o reino do Estado,
como o império de César, é, exatamente, e somente, deste mundo.
Sendo o reino de Cesar e do Estado, deste mundo, isso não significa que Cesar e o Estado se desinteressem pelo reino de Cristo, porque
o reino de Cristo é também para os homens, e Cesar tem deveres espirituais como
homem, como tem direitos como Chefe do Estado. Os direitos de Cesar, nos
limites do seu Império, são exclusivos,
e tão exclusivos, que o próprio Cristo
os reconhece e neles não interfere. É
claro que Cesar não deverá passar os limites do seu Império. Quais são esses
limites? Os do respeito à personalidade
humana, ao livre arbítrio, pois
este já pertence ao reino de Cristo. E,
por isso, jamais Cesar poderá
penetrar os umbrais da consciência de seus dirigidos, como estes
jamais poderão transpor os arcanos da consciência de Cesar, pois o fundo da
consciência do homem pertence exclusivamente ao reino de Deus. Por isso, jamais
Cesar poderá plasmar essa consciência em seus dirigidos, conforme seus próprios
desejos, como também seus dirigidos não
poderão plasmar a consciência de Cesar, pois ele, no fundo, é também humano,
simples vassalo do reino de Deus, e só
ele deve saber a maneira de melhor cumprir seus deveres como vassalo.
O povo não pode ser uma criação de
César, nem César uma criação do povo. Seria usurpar direitos que só pertencem a
Deus. E toda vez que Cesar quer criar o Povo, fabrica um monstro; e toda vez que o Povo quer criar
Cesar engendra um Anti-Cristo.
Daí o senso realista do Integralismo.
Tem de tomar a massa na sua verdade histórica e tem de considerar os grupos
naturais: a Família, a Corporação Econômica e cultural, a Nação, conforme suas
essências próprias e segundo princípios eternos.
O conceito cristão da vida deve ser o
dos equilíbrios perfeitos. É preciso conhecer o Homem, a argila de que é feito,
a sua finalidade superior, a sua missão na terra, os seus sentimentos, a invulnerabilidade da sua consciência, para se
poder organizar o Estado isento das deturpações que lhe poderiam trazer a
mística estatal, a adoração de Cesar, o
absolutismo do Gênio, o sentido exagerado das exaltações revolucionárias.
Digo estas coisas sob a impressão das
minhas responsabilidades de Chefe de algumas centenas de milhares de
brasileiros e sob a inspiração que me oferece o Mestre dos Mestres, do qual não
devermos nos afastar. No ímpeto revolucionário com que despertei a juventude da
Pátria, arrastando massas humanas, em aplausos delirantes, atrás de mim;
assistindo à realização do sonho que gravei anteriormente nos meus livros, e
ouvindo o rumor de uma Nova
Nacionalidade, o canto glorioso de uma geração à qual ensinei as giestas luminosas da Primavera;
e sentindo a fascinação, o magnetismo
com que arranquei do torpor e da mediocridade uma geração que é a maior e a mais bela de
quantas o Brasil já deu, - muitas vezes percebi o perigo que poderíamos
preparar para o futuro do meu Povo e para mim próprio. Eu mesmo poderia perder a consciência de minha da
minha própria personalidade, porque me julgaria, a cada passo, diante do
formidável milagre nacional do Integralismo, único na História, alguma coisa
muito superior ao que realmente sou. Mas eis que, as vésperas do triunfo - porque não duvido um só instante de que a
vitória integralista se aproxima – cai
sobre mim a luz mais viva, mais penetrante, mais imprevista, iluminando-me com
o fulgor de um raio que me mostra toda uma paisagem: sinto a
humanidade de Cesar e a humanidade do Estado. Sentindo-a, no fundo de minhas inquietações e do meu
orgulho de agitador, surge uma claridade tranquila, a consciência de homem de
Estado, e nessas claridades vejo a imagem d’Aquele que nos ensina as lições da harmonia e o
segredo das construções políticas, visando a felicidade possível dos homens.
Estas coisas que escrevo no dia de
Natal não serão compreendidas pelos políticos liberais-democratas, pelos
fúteis, pelos indiferentes; serão, porém, compreendidas por todos aqueles que
têm responsabilidade no movimento Integralista e ainda por aqueles que, em
nossa Pátria, estão nos combatendo, a secreto serviço dos escravizadores do
Brasil e que por causa delas (estas palavras) desencadearão contra nós os seus
ódios e as suas calúnias. Serão compreendidas por todos os que adoraram
sinceramente o Cristo no dia de Natal. E a mocidade que se lança comigo neste
ímpeto revolucionário, nesta marcha gloriosa de renovação, de arejamento dos
espíritos, nesta luta inebriante porque é cheia de perigos, há de distinguir
nitidamente, o pensamento mais profundo que estas linhas encerram e que eu
espero possa valer um dia, aos que terão sobre si o peso dos futuros governos da Nação
Brasileira, como um aviso permanente, uma bússola segura, que evitará futuras
hecatombes nacionais.
Esta é a minha carta de Natal. Só
Deus sabe como a pensei, antes de
escrever. Um dia, ó integralistas, estas linhas poderão servir
para a escolha dos Chefes futuros dos que, através deste século, continuarão a
obra política que iniciei. Não sou o fundador de nenhuma religião, porém, o
fundador de um Estado. E possam os meus continuadores, aos quais deverei
entregar a minha construção, prosseguir nela, segundo este mesmo ritmo, esta
aspiração de harmonia, este sentimento de humanidade. É preciso construir um
Estado para homens e segundo as necessidades dos homens, segundo as suas finalidades,
a sua natureza, os seus direitos, os seus deveres, a sua função e as suas aspirações justas. E que
o Estado e a Nação, César e o Povo, sejam recíprocos espelhos onde possam
contemplar suas recíprocas virtudes e seus mútuos sonhos de grandeza e de
felicidade.
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Publicado originalmente no Jornal
A Offensiva em 25 de dezembro de
1935. Posteriormente publicado nos Livros Palavra
Nova dos Tempos Novos (1936), A
Madrugada do Espírito (1946) e O Integralismo
perante a Nação (1946)
Transcrito integralmente de Palavra
Nova dos Tempos Novos. 3 ª edição. São Paulo: Panorama, 1937; páginas 135 e
seguintes.