Plínio Salgado
A que misterioso ritmo obedece esse
estranho rumor, a princípio vago e indistinto, já agora nítido e altissonante,
que perpassa pela superfície da terra, dando a volta ao seu meridiano?
Que sentido profundo traz essa
agitação geral dos povos, a tragédia surda dos espíritos, a angústia dos
oprimidos e o sobressalto dos opressores?
As cidades cresceram para os céus. Os
mares coalharam-se de naves de aço. O homem percorre a amplidão com asas de
águia. A terra multiplicou as suas messes, as indústrias multiplicaram seus
benefícios. Todos os confortos imagináveis se tornaram realidades banais. Todos
os sonhos de beleza e de magnificência foram ultrapassados. E nunca o homem
dominou mais os elementos, nunca imperou melhor sobre a natureza.
Rufam no espaço os motores; gritam as
locomotivas; berram os automóveis; uivam os apitos das fábricas; estrondam as
usinas; mugem os navios; sibilam polés; estridulam guindastes; cantam os
rádios... É a sinfonia planetária...
O esplendor do homem
Todas as ambicionadas farturas a que
a Antiguidade poderia ter aspirado centuplicaram-se de uma maneira assombrosa.
Os celeiros do velho Faraó, refertos
para socorrer as populações da África e da Ásia, durante os sete anos de
penúria, são ridículos em face dos "stocks" internacionais de trigo,
de vinho, de café, de todas as mercadorias, capazes de abastecer duas vezes a
Terra.
O ouro de todos os impérios antigos
não se compara ao ouro que a Civilização carregou para as arcas dos Bancos, dos
recessos da América Meridional, das entranhas do Alasca e dos Estados Unidos,
do subsolo da Ásia e da África.
A força dos animais e dos escravos,
que arrastava colunas monolíticas e impelia no mar os quinhentos remos das
galeras romanas, é hoje uma minúscula energia de formigas, comparada à potência
das locomotivas e dos transatlânticos, dos dínamos propulsores das usinas.
A rapidez de raio das quadrigas do
corso, não passa de um lerdo movimento de caranguejos, em proporção à
velocidade da canção do Broadway, que se escuta no mesmo instante, no orbe
inteiro, ou da luz com que Marconi ilumina do seu iate, em Gênova, a cidade
antípoda de Sidnei, na Austrália.
As máquinas produzem por milhares de
homens. A Civilização esplende nas suas grandes Metrópoles. Nunca a humanidade
foi tão rica, nunca o gênero humano conheceu maior fartura.
A própria terra, rejuvenescida pelos
adubos químicos, revolvida pelos tratores ágeis, plantada com a nova e
milagrosa técnica, decuplica o volume das suas safras, mãe carinhosa dos
homens, transformada em escrava de sua indústria.
O boneco de carne
E, entretanto, nunca houve desespero
maior, nunca o ser humano mergulhou em confusão tão grande, tão desnorteadora.
Nas grandes babilônias cresce a
legião dos desocupados; os vagabundos disputam um pedaço de pão; há criaturas
sem teto, que dormem ao relento, ou na promiscuidade dos albergues; e o próprio
trabalho já não é um prazer, mas um triste manobrar de manivelas e de
alavancas, onde toda a iniciativa do espírito desapareceu.
Outrora, o trabalho tinha qualquer
cousa de fino, de sutil, feito de amor e de entusiasmo, de esperança e de
alegria íntima, criadora; e, agora, o homem sente-se, cada vez mais, submetido
a um ritmo mecânico, que o vai transformando, dia a dia, numa peça do grande
maquinismo da Produção.
Não amando mais o trabalho (e só se
ama aquilo onde se realiza a fusão do espírito com as necessidades da matéria);
vendo a "arte" ser substituída pela "técnica"; a feição
individual anulada pela feição estandardizada; a tendência das vocações
contrariada pelas possibilidades das colocações, — o homem moderno vai se
tornando um autômato, um boneco de carne e osso, que será possivelmente
substituído por um outro boneco de aço e ferro, quando o barateamento do custo
da produção e a racionalização do trabalho, levada aos extremos que a técnica
sugere, determinar que assim seja.
O animal do “oitavo
dia”
A máquina moderna, criação do homem,
para produzir confortos ao homem, torna-se uma concorrente deste.
Vede um tear, uma linotipo, uma
rotativa, um motor, um calculador mecânico. Que estranhos seres! Parece que
pensam, que raciocinam, que respondem numa linguagem que não é de palavras, mas
de ação.
A máquina é um ente que tem, sobre o
homem, a vantagem de não fazer greves, de não ter coração para amar nem boca
para falar. E em se tratando de mercadorias similares (e tão similares que a
Economia Clássica os submete às mesmas leis da oferta e da procura), é sempre preferível
a que importunar menos e produzir mais, melhor e mais barato.
Nestas condições, o monstro de aço
conquistou, mais do que a igualdade, a superioridade social sobre o homem.
A máquina não tem pais nem gera
filhos; não vibra de afetos; não alimenta aspirações; não cultiva preconceitos.
É, portanto, muito mais conveniente ao capitalismo universal.
E é por isso que esse capitalismo
quer arrancar do homem os últimos resíduos espirituais, para que a massa
proletária se transforme também num sistema de maquinismo...
O monstro de aço! Quando ele
trabalha, suas rodas dentadas, suas engrenagens, suas serras parecem rir da
criatura de Deus. E os apitos das fábricas parecem um grito dominador dizendo
ao homem, quando rompe a aurora: "Levanta-te, peça de máquina!”.
Esse grito domina o panorama das
cidades tentaculares, onde o homem sofre, esmagado pela própria civilização que
ele criou.
Humanidade mecânica
O instinto da máquina vai avassalando
tudo.
As casas mesmo começam a mecanização
do homem, na forma rudimentar do “cortiço”, para depois se fixarem em
expressões mais técnicas das vilas proletárias e dos arranha-céus de
apartamentos.
É olhar uma casa e ver todas.
Submetidas à mesma planta, à mesma fisionomia, elas impõem a cada ser humano um
ritmo idêntico de movimentos, anulando a personalidade, para que triunfe a
coletividade. Pois é sobre a coletividade que a máquina domina mais soberanamente.
E ela exige que se modelem coletividades de formas geométricas precisas e
cadências uniformes.
Essas coletividades devem ser
estereotipadas à fome. Devem cristalizar-se nos fornos de todas as
necessidades, de todas as angústias, que irão obrigando cada tipo isolado a se
acomoda ao grande ritmo dos tipos comuns, cuja finalidade é o próprio ritmo,
cujo sentido é a mecanização total da existência.
A redução ao inanimado. A
racionalização desracionalizante. O homem-tipo, como a máquina-tipo. O trabalho
mercadoria, como o quilowatt-hora. O índice de calorias dos combustíveis. O
trabalho como finalidade do trabalho. A morte total do espírito.
A besta do Apocalipse
Todo esse inferno contemporâneo é
presidido pela soma do trabalho acumulado pelos latrocínios, na tradução
metálica das barras de ouro e na versão social do papel moeda, concentrados nas
mãos de poucos. É o capital.
Tudo gira em tomo desse ídolo muito
mais terrível do que o Moloch de Cartago, que exigia menor número de vítimas
para as suas entranhas de fogo.
∑
Por que sofre tanto a humanidade?
É o Capital, que marcha para a sua
feição mais simples; que ensaia a sua tirania na forma dos grandes trustes, dos
monopólios, dos grupos financeiros, das organizações bancárias, e que se dirige
para o capitalismo do Estado, numa velocidade cada vez maior e mais enervadora.
É a besta apocalíptica.
Que se assenhoreou do poder dos reis
e dos impérios; que proclamou sua tirania sobre todas as nações, sobre todos os
grupos sociais e sobre todos os homens.
É o espirito da mentira e da
crueldade. O dragão que devora os povos.
Ele ergueu-se, na face da terra, para
enfrentar e negar Deus, como negou pela vez primeira quando rolou para as
trevas eternas; que se levantou para esmagar o Homem, arrastando-o a todas as
abjeções, para finalmente arrancar-lhe o
coração e deixar-lhe, apenas, os movimentos mecânicos da máquina.
Condenados e oprimidos
Cresce, por todo o Universo, o
estranho rumor.
É o clamor do Homem que sofre, nas
colônias remotas da Ásia e da África; na estepe da Sibéria, nos Urais e no
Cáucaso, tangido por algozes; nas entranhas do Ruhr, de Cardiff, negro de
hulha; nas profundezas das minas de diamantes do Transvaal, das cavernas de
ouro do Morro Velho, da Califórnia; nos sertões do Brasil, nas salitreiras do
Chile, nas galés das Guianas, nos bairros proletários das grandes metrópoles
resplandecentes como Babilônias multiplicadas, por toda a superfície do
planeta, e nos porões dos transatlânticos e das naves de guerra, armadas para
os morticínios...
É o gemido do Homem, que já não tem
trabalho porque a máquina o expulsou das fábricas; que não tem pão, porque, na
fartura imensa, já não há necessidade do esforço do pária, e as leis vigorantes
determinam que se tome a mercadoria-trabalho quando se precise, e se deixe
morrer o trabalhador, quando não se necessitar dele.
O útero metálico da
máquina
O Homem, vencido pela máquina, pensa,
então, em criar o regime político que agrade à máquina. Pensa em viver em razão
da máquina.
De há muito que a Democracia renegou
os governos éticos, concebendo o Poder como uma expressão do "Homem
Cívico", portanto, do Homem mutilado, do Homem sem alma. De há muito que
se desprezou a teocracia.
Mas o Homem hoje volta-se para uma
forma imprevista de teocracia. Quer ser governado pelos Sumos Sacerdotes do
Ateísmo. Aceita a grande razão da técnica e do capital. Aceita desaparecer como
gota de água no oceano do coletivismo, onde toda a personalidade se destrói.
É a mais moderna expressão mística.
O misticismo que nega uma face da
metafísica, para proclamar o valor da outra face.
E que subordina o Homem a uma
divindade infernal, que não se funda no amor, mas na ausência do amor. E nega
ao Homem o direito de se interessar pelas outras criaturas, pois só deve
cogitar de si.
De si, não como personalidade
irradiante, e sim como fração de um grande Todo.
O Homem renega o amor, para aceitar o
egoísmo.
O amor impunha-lhe deveres; o egoísmo
subordina-o à escravidão dos instintos.
A vida do instinto é o primeiro passo
para a transformação do ser humano em máquina.
Essa transformação é dolorosa, porque
o espírito reage.
O Homem inventou a máquina. A
máquina, agora, quer fabricar homens. E se um dia saírem homens das usinas,
também os úteros das mulheres gerarão homens-máquinas, sem coração, sem afeto,
meros aparelhos de produção...
Fala alguém na tormenta
Infinita é a angústia do espírito.
Por todo o planeta perpassa um misterioso rumor... Que estranhas vozes falam no
rumor da procela?
E no rumor da procela há vozes, há
algumas vozes que falam...
Só as escutam os que conservam a
consciência da grandeza humana. Só as entendem os que trazem consigo a
fortaleza do Espírito Perene e a permanência das secretas energias
indestrutíveis...
(SALGADO, Plínio. O
Soffrimento Universal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. Transcrito das
páginas 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 e 24).
Obs.: Este Artigo foi
reproduzido nas antologias “Madrugada do Espírito” e “O Pensamento
Revolucionário de Plínio Salgado” sob o sugestivo título de “O Mundo que
prepara a catástrofe”.