Plínio
Salgado
(Copyright
para os “Associados”)
Estou lendo em “O Globo” uma
entrevista de Dom Helder Câmara, respondendo a uma acusação de sr. Gilberto
Freyre, que diz haver sido o atual arcebispo do Recife um fascista em 1945.
Defendendo-se, o prelado declara: “Jamais neguei que, na mocidade, pertenci à
Ação Integralista Brasileira. Entre 23 e 24 anos de idade, vi o mundo como
ainda hoje parece vê-lo o professor Gilberto Freyre: irremediavelmente dividido
entre capitalismo e comunismo. Um dia descobri que incomparavelmente mais
importante do que a divisão entre Leste e Oeste, é a divisão entre Norte e Sul.
Isto é: incomparavelmente mais importante do que a divisão entre comunismo e
anticomunismo é a distância, cada vez maior, e mais dramática, entre países
desenvolvidos e países subdesenvolvidos. Em face dos países subdesenvolvidos,
nada se parece mais com o egoísmo dos EUA do que o egoísmo da URSS”.
Estas declarações demonstram que o
arcebispo não chegou a conhecer nem a doutrina nem a ação prática do
integralismo. Acusado de fascista, responde que, realmente, pertenceu à Ação
Integralista Brasileira e, nessa resposta, confirma o errado conceito que o sr.
Gilberto Freyre tem daquele movimento hoje considerado, pelos mais insuspeitos,
a fonte do atual nacionalismo de que Dom Helder se fez apóstolo e dos
sentimentos de brasilidade que têm sido através de todas as nossas crises, o
alicerce de sustentação das nossas tradições democráticas, da soberania
nacional e das tradições históricas da Pátria. Deveria o prelado dizer que
nunca foi fascista, pois o integralismo não era e não é fascista, mas uma
doutrina espiritualista, cristã, nacionalista sem jacobinismo, preocupado com a
justiça social e reformas indispensáveis para atingi-la. Com essa resposta, Dom
Helder se colocaria bem com a verdade histórica, colocar-se-ia numa posição de
respeito a seus velhos companheiros que ainda sustentam os mesmos ideais e com
uma juventude que em número de milhares de estudiosos igualmente os sustenta.
Nenhum de seus antigos correligionários se sentiria ofendido, mas, pelo
contrário, formariam uma eficiente retaguarda a prestigiar a obra atualmente
exercida por aquele tão carinhosamente chamado padre Helder, nos anos de 1932 a
1937. E, sobretudo, não daria sua colaboração, ainda que indireta, às
aleivosias levantadas pela ditadura totalitária que dominou o País, durante
oito anos, e pelos agentes do capitalismo e do comunismo.
Como chefe e doutrinador do
integralismo, sempre considerei o fascismo, o nazismo, o socialismo, e
comunismo, o trabalhismo, o liberalismo, formas superadas de concepções,
políticas e econômicas do século XIX. O nosso movimento, naquele tempo (como
agora), visava a atualizar a mentalidade brasileira em relação às novas
circunstâncias internacionais e a tomar como base as realidades do nosso País.
Seu pensamento central sempre foi o da compreensão integral do universo e do
Homem, segundo suas formas, substância e movimentos, proclamando a correlação
fenomênica, da qual se conclui não existirem problemas isolados, mas
interligados reclamando soluções globais atentas a reciprocas implicações e à
repercussão de consequências no corpo social. O integralismo toma o Homem,
consoante a definição da velha patrística e da legitima doutrina católica, como
uma dualidade consubstancial exprimindo-se numa unidade substancia, isto é,
corpo e alma, não separados, mas integrados na expressão da personalidade.
De tal pensamento deduz-se uma
criteriologia administrativa, ou de Governo, e uma criteriologia
representativa, a primeira estabelecendo planejamentos racionais libertos de
unilateralismo dominante no fascismo e no nazismo (predominância do Estado
sobre as pessoas), no socialismo e comunismo (opressão do Coletivo sobre o
Indivíduo), no liberalismo (domínio do Individualismo sobre o Bem Comum); a
segunda, propondo um sistema representativo em que cada um dos órgãos vivos e
ativos do todo nacional tenha voz (que hoje não tem) nos debates e soluções dos
problemas que a cada qual e a todos interessam.
O progresso científico e tecnológico
do nosso tempo, a expansão dos imperialismos capitalista e comunista, os
conflitos decorrentes da escravização cada vez maior do Homem aos detentores
dos meios de produção e ao despotismo das automações que marginalizam multidões
de seres humanos das fábricas e dos escritórios e levam à indigência as
populações rurais, a tudo se acrescentando os horrores das guerras e a tragédia
das revoluções internas, conduzem os pensadores mais atualizados a aceitar os
princípios da doutrina integralista.
A frase inicial com que lancei o
movimento a que pertenceu Dom Helder era esta: “Façamos todas as reformas, mas
respeitemos a integridade do Homem”. Ora, respeitar essa integridade é,
preliminarmente, manter a liberdade, o livre-arbítrio, faculdade e atributo
inerente à racionalidade conferida por Deus ao Ser Humano; em seguida,
proporcionar ao Homem, à Mulher, à Família, os meios materiais indispensáveis
ao exercício de tão sagrado direito.
Como se vê, nem mestre Gilberto
Freyre conhece a doutrina integralista, nem Dom Helder soube defender-se
cabalmente da acusação que lhe foi feita.
Não sou dos que desaprovam a ação do
atual arcebispo do Recife em prol dos pobres e das regiões subdesenvolvidas do
País. Pelo contrário, julgo-a necessária como componente no grande esforço que
hoje todos nós fazemos pelo reerguimento do Brasil. O prelado de agora é o
mesmo padre de ontem, em companhia do qual andei pelos areais da orla marítima
de Fortaleza, numa noite escura do ano de 1933. Ele me ia mostrar os
necessitados, as famílias sem recursos, aquela gente que estava a precisar de
nós para a sua redenção social. Nossos pés se enterravam na areia. Sobre nossas
cabeças, num céu sem luar, cintilavam as estrelas. De vez em quando, parávamos
e eu contemplava o perfil do jovem sacerdote, com a batina negrejando e agitada
pelo vento; dava-me a impressão de que recuáramos aos meados do século XVI e que
meu companheiro na aventura noturna era Anchieta.
Mais tarde, o padre transferiu-se
para o Rio onde foi meu auxiliar direto e de minha absoluta confiança. Nesse
período (creio que de 1934 a 1937), resolvemos juntos um caso tão grave, como
sentimental. Foi a saída de Jeovah Mota do integralismo. Ele tinha sido eleito
deputado federal pela Legião Cearense do Trabalho, anteriormente liderada por
Severino Sombra, depois pelos três fundadores do integralismo no Ceará: Jeovah,
Carvalhedo e padre Helder.
Para ficar provado quanto o
integralismo (ao contrário do fascismo, do nazismo, do comunismo) era
espiritualista e cristão, basta narrar o caso, que revelou em Jeovah Mota um
dos homens de maior dignidade e nobre caráter entre os que tenho conhecido.
Escreveu uma carta ao padre Helder na qual, dizia ter chegado a convicções
inteiramente materialistas e, por isso, não podia mais continuar num movimento
que punha acima de tudo a sua crença em Deus. Ao contrário do que fazem muitos
políticos, Jeovah renunciava à cadeira de deputado e pedia ao padre Helder que
se entendesse comigo para a sua substituição na chefia do Ceará. Naquela
madrugada o padre Helder seguiu de avião para Fortaleza comunicou o fato aos
companheiros e cumpriu a missão que eu lhe atribuíra. Se o integralismo fosse
fascismo, Jeovah poderia continuar em suas fileiras; mas éramos espiritualistas
e cristãos.
Outro equivoco de Dom Helder, na
resposta a Gilberto Freyre: é quando diz que via o mundo errado, tendo mais
tarde descoberto que mais importante do que a divisão entre Leste e Oeste
(comunismo e capitalismo) é a divisão entre Norte e Sul (capitalismo e
subdesenvolvimento). Para isso não precisava deixar de ser integralista, pois
foi o integralismo que levantou, pela primeira vez, a bandeira contra o
capitalismo de Wall-Street, o que é reconhecido por todos os atuais
nacionalistas e pelos próprios esquerdistas. Basta lembrar o livro de Gustavo
Barroso intitulado “Brasil, colônia de banqueiros”. Nunca, desde os primeiros
dias de sua existência até agora, nas atividades de propaganda da terceira
geração que estou preparando para nossa Pátria, deixamos de adotar essa linha.
De que se pode penitenciar Dom Helder
pelo fato de ter sido integralista? Por trazer este o lema “Deus, Pátria e
Família”? Por sustentar os direitos humanos, colocando o Homem como base de
toda a construção social? Por incutir em nosso povo o respeito pelas nossas
tradições históricas e o culto das virtudes cristãs? Por se insurgir contra os
costumes de uma sociedade corrupta e contra aquilo que denominei “Espírito da
Burguesia”, no título de um de meus livros? Por ter ensinado o povo a cantar o
Hino Nacional? Pelo magistério que exerceu no sentido de que os filhos
respeitassem os pais, os alunos os mestres, todos os cidadãos as leis, as
autoridades públicas e os símbolos da Pátria? Por haver dado aos brasileiros a
noção do seu próprio valor contra as teorias falsas da superioridade de raças?
Ou simplesmente porque não pode assumir o governo do Brasil?
Havia, na Ação Integralista Brasileira,
uma corrente, com o pensamento puro do movimento, conhecedora da sua verdadeira
doutrina, da filosofia em que se embasava, e duas outras divergentes, que muito
trabalho me deram: uma direitista e outra esquerdista. Os da primeira talvez
pudessem assemelhar-se aos partidos totalitários; os da segunda propendiam para
os exageros socialistas, tendo mesmo alguns desertado para o comunismo.
Tenho a impressão de que Dom Helder
deixou-se sugestionar pela propaganda das calúnias, deturpações e desfigurações
de que foi vitima o integralismo no tempo da ditadura e acabou se convencendo
de que a corrente direitista, qualificada de fascista era a principal.
É um fenômeno psicológico hoje
conhecido com o nome de “complexo de culpa”, pelo qual um indivíduo se convence
de que praticou uma ação jamais praticada.
Continue Dom Helder na luta por
nobres idealismos, evitando apenas o perigo de ser utilizado pelos agentes da
anti-nação, como foram os mencheviques pelos bolcheviques na Rússia. Ninguém,
em consciência, pode ser contra seus elevados sentimentos. Mas esteja tranquilo
quanto ao fato de ter sido integralista: isso até o honra e fortalece na
batalha que encetou. E pode ficar certo de que o movimento que o empolgou na
sua mocidade não mudou uma linha de sua doutrina e hoje inflama, dinamiza e
propele uma nova geração, que soube fazer revisão histórica, que analisou o
integralismo sob todos seus aspectos (aparência e essência) no sentido de
sustentar uma bandeira que caiu das mãos de alguns, mas foi reerguida pelas
mãos de muitos.
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Publicamos o magnífico esclarecimento de Plínio Salgado
graças à generosa colaboração do Companheiro Cleiton Oliveira - Autor do
excelente Artigo “Hélder Câmara em Perspectiva”, cuja leitura recomendamos
vivamente -, que o digitou na íntegra, e a quem agradecemos e
enviamos o nosso vibrante Anauê!
Reprodução fotográfica do original pode ser visualizada em “Plínio Salgado critica publicamente Dom Hélder Câmara”